O garoto faminto
Acompanhados de amigos decidimos uma vez ir jantar no Swiss Restaurant, de propriedade de um suíço estabelecido em Katmandu. Além de ser um estabelecimento muito mais limpo do que os demais, tinha, ainda mais, iguarias como fondues e outros pratos.
A caminho do Swiss Restaurant, enquanto discutíamos o que gostaríamos de experimentar, fomos abordados por um garotinho de uns dez anos de idade, que esmolava. Mais um dos meninos de rua de Katmandu. Sou, porém, em princípio, contra dar dinheiro para crianças.
O garoto, entretanto, insistia. Pedia-nos uma rúpia para comer momos – pasteizinhos tibetanos cozidos, com recheio de carne de búfalo ou verduras. Na época os momos só eram vendidos num carrinho na rua. Hoje, porém, fazem no menu dos restaurantes, servidos num prato. Ou seja, foram plenamente adotados pelos turistas. Pessoalmente, aliás, acho momo algo delicioso.
Ganesh, um menino de rua de Katmandu
O menino falava um inglês falho, porém compreensível. Dizia que não havia comido nada naquele dia e, pelo seu desespero, via-se, aliás que era verdade. E nós, bem alimentados, discutindo o que comeríamos de bom no Swiss Restaurant, onde iríamos gastar umas vinte rúpias cada um. Não dava, portanto, para negar o pedido do menino. Tínhamos chegado à Durbar Square, onde os tibetanos cozinhavam e vendiam momos ao ar livre. O garoto nos apontou o caldeirão em cima do fogareiro:
— Uma rúpia, apenas uma, sir.
Faminto
Esse “sir”, comum no Nepal, me incomodou. Ou seja, soava terrivelmente colonialista para mim. Àquela altura, todos achamos que devíamos pedir igualmente uma porção para ele. O garoto não tentava nos enrolar. Estava de fato faminto. Dessa forma chegou mesmo a engolir, assim, sua porção ainda fumegante. Talvez mesmo chegando a queimar a boca, enquanto assoprava a comida
O tibetano que preparava os pastéis sorria para nós. Um dos franceses que estava conosco disse que os momos eram meio picantes, mas bons. Logo pedimos uma porção para cada um e chá, também vendido na banca ao lado. Experimentei, portanto, a especialidade tibetana: era melhor do que eu esperava. Desse modo, acabamos pedindo mais porções para todos nós, inclusive para o garoto.
O menino contou chamar-se Ganesh, como o deus-elefante. Ou seja, é comum no Nepal dar às crianças nome de deuses, como Krishna ou Ganesh. Enfim, entre os católicos é igualmente costume dar nomes de santos às crianças. Em toda a América Latina, da mesma forma, Jesus é prenome de peruanos, hondurenhos, mexicanos, brasileiros e outros latino-americanos. De portugueses e espanhois igualmente. Mesmo entre ingleses nomes como Christian são comuns. Sem falar, aliás, nas milhões de Marias, Marys, Maries que existem em todo o Ocidente.
Os meninos de rua de Katmandu
Ganesh tinha os cabelos raspados, conservando apenas uma mechinha comprida no alto da cabeça. Ficamos conversando com ele e, já sem fome, desistimos do restaurante.
— Onde você dorme, Ganesh? — indaguei.
Dormia nos templos ou no carro de Kumari, a Deusa Viva, junto com outros meninos de rua de Ktmandu. O carro de Kumari era uma grande carroça enfeitada como um carro alegórico que levava a divindade em alguns festivais hinduístas. A maior parte do tempo, porém, ficava estacionado num local coberto e trancado em um canto da grande praça.
Garotada esperta
Ganesh e seus amigos eram de fato crianças de rua, que viviam na cidade sem pai nem mãe. Mas, sobreviviam e, felizmente, não eram, entretanto mutilados nem explorados por adultos. Espertos, descobriram, assim, que uma das janelas laterais do abrigo da carruagem de Kumari poderia ser removida e, quando a noite caía, entravam ali.
Quase todos vinham das montanhas, onde alguns ainda tinham parentes, e chegavam à cidade apenas com a roupa do corpo. Depois de algum tempo em Katmandu, faziam bicos ou, aprendiamos rudimentos de inglês. Assim caíam nas boas graças de estrangeiros que lhes compravam roupas e lhes asseguravam também algumas refeições.
O turista partia e o garoto passava um tempo órfão, até achar outros padrinhos.
No dia seguinte, revimos Ganesh. Eu estava com Bernard, sentado junto à bica da praça, tomando sol, quando o vimos passar acompanhado por uma loirinha que conhecêramos no Chinese Restaurant. Quando a moça, que fora alugar uma bicicleta na esquina da New Road, partiu pedalando, Ganesh veio conversar conosco, mostrando-nos, orgulhoso, as sandálias havaianas e a camiseta novas com que a garota lhe presenteara.
As estratégicas de sobrevivência
Ganesh nos dera uma demonstração de como um menino de rua de Katmandu sobrevive. Assim, certa manhã, nós o convidamos para tomar café conosco. Depois de consultá-lo sobre o que queria comer, pedimos café com leite, torradas e ovos fritos. Ou seja, um tipo de café da manhã que, quando tinha sorte, lhe era oferecido por turistas. No final da refeição, vimos com surpresa que ele comera os ovos e apenas uma das torradas.
Enrolara a outra num guardanapo e a pusera no bolso. Ergueu os olhos para nós:
— É para depois, sir — disse com um sorriso.
Tomei um gole de meu café, olhei para ele e disse:
— Tá bom, sir Ganesh…
A japonesa linda
Ficamos surpresos com a maturidade do garoto quando perguntou o que fazíamos, no que trabalhávamos e, claro, a clássica pergunta: se tínhamos esposas e filhos. Minutos depois, igualmente, quando uma japonesa de longos cabelos negros, a mais linda oriental que vi em minha vida, entrou no restaurante, atraindo olhares, ele riu:
— Ah, vocês gostam de moças bonitas… Cuidado, pois elas podem trazer problemas!
Aquilo também já era demais… Esse moleque só nos surpreendia! Caímos, Bernard e eu, na risada.
Nosso agente de compras
Levantamo-nos; queríamos fazer algumas compras. Procurávamos, em suma, um tipo de túnica nepalesa mais pesada do que a indiana, adaptada ao clima fresco do país que se tornava, aliás, cada vez mais friozinho.
— Vamos ao mercado. Quer vir?
Ganesh topou na hora. Claro que já imaginava, como de fato aconteceu, que compraríamos algo para ele. Desses modo, depois de dar uma olhada nos preços e muito barganhar, compramos duas túnicas para nós e uma para ele. Quando nos afastamos com as peças numa sacolinha, Ganesh balançou a cabeça.
— Vocês pagaram muito caro.
Nos surpreendemos. Afinal, já com traquejo nos negócios com nepaleses e indianos, não éramos patos facilmente depenáveis. Em suma nunca íamos aceitando o primeiro que nos pediam. Dissemos isso a Ganesh, que nos respondeu que talvez tivéssemos pago de fato, o melhor preço que um estrangeiro poderia pagar por aquelas roupas.
Deixem comigo
— Mostrem o que querem, eu vou sozinho na loja e compro qualquer coisa por pouco mais da metade do preço. Deixem comigo.
A partir daí, o nomeamos nosso encarregado de negócios. Francamente, aliás, já estávamos pagando tudo muito barato. Um dólar valia, assim, umas trinta rúpias nepalesas, se me lembro bem. A diferença que Ganesh obtinha para nós, mesmo viajando num esquema econômico, não era, afinal, tão importante.
Além disso, apreciamos muito igualmente, a honestidade do garoto, que nos prestou conta de cada centavo que gastara. Assim, resolvemos dar a ele a maior parte dos benefícios obtidos nas negociações com os lojistas. Arregalou os olhos. Talvez nunca tivera uma soma dessas nas mãos e nos peguntou o que devia fazer. Nos entreolhamos. Afinal, com aquele dinheiro Ganesh poderia comer muito bem e até convidar amiguinhos para se banquetear com momos, momentos de felicidade para eles. Olhou para o dinheiro.
— Uma parte vou levar pra minha família no Himalaia. — Cruzou assim as mãos na altura do peito
— Namasté!.
Respondemos ao seu gesto.
— Namasté, Ganesh!
Uma mini-história de vida
Ganesh tinha 10 anos de idade. Já possuía, porém, sua pequena história de vida. Contou-nos, assim, que, periodicamente a polícia nepalesa realizava batidas, capturando meninos de rua. As crianças eram posteriormente levadas para abrigos nas montanhas, verdadeiros campos de concentração. Ou seja, bem longe da vista dos turistas. Ganesh, que uma vez já tinha ido parar em um lugar desses. Conseguira escapar e nos falara horrores desses campos de internação. Ou seja, nos dissera que lá passava frio, apanhava e a única coisa que tinha para comer era arroz.
— Arroz ruim, do pior.
Um menino das montanhas
— E os teus pais, Ganesh, ainda vivem? — perguntei.
Disse-me que sua mãe, sim. Logo nos contou que sua família era gente pobre, das montanhas. Portanto, quando, por sorte, conseguia ajuntar uns trocados, levava para sua família. De Katmandu, após umas horas de ônibus descia numa aldeia junto da estrada. Depois, sozinho, esse menino caminhava igualmente ainda um dia inteiro por pequenas trilhas.
Uma longa caminhada
Quando estava muito cansado dormia em templinhos em seu caminho. Um espaço, aliás, que ele eventualmente dividia com outros garotas na mesma situação. Passava assim por florestas, campos e aldeias vendo os camponeses cuidarem de suas plantações.Ccaminhava ao lado dos contra-fortes do Himalaia. Tive muita curiosidade de conhecer esse caminho. Ou seja, não deixava de imaginar o garotinho caminhando léguas e léguas por pequenas trilhas que só ele conhecia.
O pai morrera e a mãe se juntara ao cunhado, um tio que não gostava dele. Sei que existe a poliandria no Nepal e que, em algumas tribos isoladas, a mulher pode ter vários maridos. (Não se entusiasmem, leitoras: eles têm que ser irmãos entre si.)
Não deu, entretanto, para entender se esse era o caso da família de Ganesh ou se sua mãe juntou-se ao cunhado por outro motivo.
Os turistas e os meninos de rua
Era importante, aliás, para um garoto como Ganesh estar bem vestido e acompanhado de estrangeiros. Ou seja, além da imediata vantagem material, ele, acompanhado de turistas, bem vestido, estava de alguma forma, ao menos provisoriamente, protegido de uma internação no tal abrigo.
Notei, iguallmente, que Ganesh procurava aprender tudo o que pudesse com os turistas. Em suma, melhorar seu inglês e até aprender palavras de outros idiomas. Sabia, portanto dizer “Bom dia”, “Boa tarde” e “Como vai?” em italiano e em francês. Da mesma forma, já tinha o tino comercial de saber que se dirigir ao turista no idioma dele aumentava suas chances. Em suma, podia de ser convidado para um café da manhã ou ganhar um pulôver.
O mundo precisa mudar, mas quem fome não pode esperar
Muitos poderão, entretanto, dizer que não será essa interação com turistas que salvará e dará uma vida digna às crianças nepalesas. Concordo plenamente. Porém, quem tem fome não pode esperar. Afinal, quando as autoridades, fulminadas por um raio espacial de consciência, se voltarão com seriedade para o problema? Isso, aliás, acontece em muitas partes do mundo. Inclusive no Brasil, e é, igualmente, muito grave.
Uma interação interessante
Para ser honesto, não eram apenas os meninos de rua, aliás, que se beneficiavam do contato com os turistas. Estes também aprendiam muito com eles. Passavam informações úteis em um país onde era difícil conversar com gente da terra, até em razão de barreiras culturais e da língua. Ganesh nos fornecia, assim, muita informação sobre seu país. Comparando o que ele dizia com o que constava de meu guia de viagem, vi que o menino sabia muito bem os nomes dos templos e das divindades. Disse-lhe que seu conhecimento do assunto poderia ajudá-lo a guiar turistas pela cidade, e ele respondeu que, às vezes, já fazia isso. O garoto sabia até mesmo como se chamava cada tipo de templo e, da mesma forma, a que dividade era dedicado.
O rei não é bom
Ganesh aprendera a reconhecer algumas palavras escritas em inglês, mas era praticamente analfabeto. Nunca frequentara uma escola. Um dia, quando comíamos em um café, lhe perguntamos sobre o rei cuja foto víamos em todos os comércios escritórios. Era tão amado assim? Ganesh olhou em volta com o rabo dos olhos antes de responder.
Viu que o dono do café estava ocupado em atender um turista do outro lado da sala e, em voz baixa, disse, fazendo uma careta:
— O rei não é bom.
— Tem retrato dele em toda parte, argumentei.
— Todo mundo tem que ter o retrato do rei na parede…
Percebemos que o assunto devia ser tratado com cautela.
As cadeias, na época, estavam cheias de dissidentes políticos.
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