Livro: A Vaca na Estrada

039 De Paris a Katmandu de carro – “A Vaca na Estrada” – Mudança de vida

Mudança de vida: Bernard contrai cólera

Estávamos, Bernard e eu, decididos a visitar os templos nos arredores de Katamandu. Tínhamos, aliás, previsto que na segunda-feira seguinte o faríamos.
Porém, algo grave aconteceu. Bernard ficou doente. Assim, eu, acompanhado de um casal francês com quem fizemos amizade, trouxemos um nepalês indicado pelo dono do hotel. Depois de examiná-lo, o “doutor” passou sobre ele uma varinha imantada. Ficamos, assim, olhando a cena e nos interrogando com o olhar. Afinal, que diabo era aquilo?

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Médico ou curandeiro?

Vocês me trouxeram um curandeiro! — rosnou Bernard, bastante mal-humorado.
Terminada a consulta, o nepalês nos assegurou que ele contraíra cólera. Não tenho, porém, a menor ideia de onde tirou sua conclusão ou qual era a função da tal varinha. De qualquer modo, no dia seguinte o médico do consulado francês examinou Bernard e confirmou o diagnóstico. Ou seja, a partir daí, o consulado cuidou do assunto. Eu e amigos franceses cuidamos da venda do Renault. Nessa época, era fácil e rentável fazê-lo. Logo, depois de passar um tempo internado no hospital americano, o único decente em Katmandu naquela época, Bernard partiu para a França.

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Bernard repatriado

O que, afinal, deu errado?

Eu o reencontraria em Paris vários meses depois, em plena forma, aliás. Mas, afinal, por que Bernard pegou cólera e eu não? Afinal convivíamos direto. Não sei. No Nepal, mesmo sem epidemias, a cólera é endêmica talvez até hoje. Pode ser bobagem, mas me lembro de que Bernard tomou um chá que não me pareceu devidamente fervido. Ainda mais, colocou no seu refrigerante cubinhos de gelo que duvidei que fossem feitos com água fervida. Ou então, talvez, simplesmente, tenha sido azarado.

A mão de Deus

Ou seja, não deu sorte. Rodou milhares de quilômetros, enfrentou todo tipo de estrada, montanhas, desertos e, ao alcançar a cereja do bolo, deixou escapa-la assim. Uma das australianas – aquela que fora, em uma de suas existências anteriores, uma sacerdotisa grega; não confunda com a princesa egípcia – pensava diferente de mim e disse que ele teve muita sorte.
A mão de Deus o salvou. Podia ter morrido.

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Mão de qual deus?

Franzi a testa.
O que ? A mão de Deus? Ele pegou cólera!
Podia ter morrido. Foi a mão de Deus que o salvou — garantiu-me.
Lembrei-me do horrível acidente de moto sofrido por uma pessoa próxima. Ossos quebrados, pinos de aço no corpo todo. Ouvi algo parecido: “Ele teve muita sorte”. Meu amigo deu um grito, irritado.
Se arrebentar em um acidente é ter sorte? Em resumo, é essa a tal mão de Deus? Se fosse teria tirado essa merda desse caminhão da minha frente!
Concordei com ele. Ou seja, incluam-me fora dessa!

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As doenças endêmicas

Ficar sozinho no Nepal mudou entretanto minha viagem. O que acontecera com Bernard devolvia-me, assim, a noção da fraqueza humana. Ele teve amigos que o ajudaram naquela hora. Um viajante solitário como eu, nesses cantos perdidos, arrisca-se, porém, a apodrecer na cama de um hoteleco qualquer. Nem consulado do Brasil existe no Nepal. Fiquei, assim, meio preocupado. Se eu contraísse uma doença grave, estaria, portanto, numa grande roubada. Visitando, com meus amigos italianos, um amigo deles, doente, num hotel barato, fiquei assustado. A mochila do rapaz estavam jogadas num canto, em desordem.
Ele tinham contraído hepatite viral, comum no Nepal na época. Enquanto isso, jazia deitado num colchão, o rosto amarelado. O ambiente não era, aliás, muito saudável; fiquei feliz quando caímos fora. Passei, portanto, a ser ainda mais cuidadoso com o que comia e bebia.

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Bhaktapur, uma mudança de vida

Estar sozinho, mudou um pouco minha vida. O colega de aventura saiu de cena. Assim, resolvi deixar Katmandu e passar um tempo em Bhaktapur, também no Vale de Katmandu, para variar de cenário.
Em todas minhas viagens pelo Nepal (quatorze vezes!) visitei Bhaktapur, a Cidade dos Devotos, como é chamada, uma das antigas capitais Mala, perto do Himalaia, em uma das pontas do vale, a uns 20 km de Katmandu.

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Na primeira vez em que estive lá, a cidade era pouco tocada pelo turismo e conservava todo o encanto de um lugar esquecido no tempo. Enfim, não fossem os traços físicos dos nepaleses e os templos, pareceria a Europa medieval, tal como retratada nos quadros flamengos, com suas festas camponesas.
Sempre estivera em todos os lugares com pessoas, um amigo, uma namorada. Confesso que nem sempre é agradável viajar sozinho. A solidão em um país estrangeiro pode ser opressiva; já passei por experiências assim. Daquela vez, porém, quis me afastar um pouco da colônia estrangeira de Katmandu, ficar só com meus botões para escrever e fotografar.

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Bhaktapur, uma cidade parada no tempo

Uma mudança de vida. Opto por me instalar em Bhaktapur por ser a mais fascinante cidade do Nepal. Sua incrível arquitetura de traçado medieval me encanta. Flanei dessa forma, sem rumo pela cidade todos os momentos do dia. Visitei igualmente seus palácios e templos magníficos. Ainda mais, fotografei um festival, cruzei com gente se lavando em fontes públicas, como em Katmandu, ou transportando água em potes equilibrados na cabeça.
Bhaktapur, ainda mais, pelo menos na época dessa minha primeira viagem ao Nepal, tinha poucos turistas. Assim, os que apareciam escolhiam um bate-e-volta a partir de Katmandu. Ou seja pouco ficavam hospedados na cidade. Aliás, a infra-estrutura turística era bastante limitada, com poucas opções tanto de hospedagem, como para se comer.

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Os oleiros

Caminhando pela cidade acabei indo parar no bairro dos oleiros. Assim, pude acompanhar o trabalho dos que se dedicavam à fabricação de potes em grandes rodas de pedra que fazem girar em torno de um eixo. Ou seja, fabricam um jarro de cerâmica em minutos! Era quase inacreditável a rapidez e a hbilidade com que produzia potes, jarras e todo tipo de peças úteis que usavam no dia a dia.

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Posteriormente as peças produzidas manualmente nessa enorme roda, centenas delas, eram espalhadas por toda a praça principal do bairro dos oleiros para secar ao sol durante dias, de manhã até a noite. Depois seriam ainda queimadas em fornos, quando, então estavam prontas para serem usadas. Nós mesmos as utilizamos inúmeras vezes para comer curd, um tipo de iogurte grosso, delicioso.

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Essa peças de cerâmica rústicas produzidas manualmente, mas em quantidade, tinham, ainda a característica de serem descartáveis. Muitos nepaleses, aliás, as utilizavam igualmente para fazer suas refeições. Ou seja, comiam seu dal (Nota do Autor: lentilha temperada ao cury) nelas. Essas cerâmicas,depois de utilizadas, eram simplesmente quebradas.

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O chão vermelho, pimenta secando em Bhaktapur

Em outro bairro, era a pimenta que era colocada para secar numa enorme praça de calçamento de pedra, tingindo o chão de vermelho. Quando eu via praças inteiras cobertas pelo vermelho das pimentas chegava a me perguntar quem consumia tanta comida ardida. Mas, era fácil lembrar: desde o Paquistão quase toda comida local era fortemente apimentada.

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Arrozais domésticos e banheiros a céu aberto

Em trechos um pouco mais afastados do centro, muitas casinhas tinham seus pequenos campos de arroz alternando-se com as construções. Assim, várias vezes, flanando nos arredores de Bhaktapur deparamos com nepaleses, geralmente mulheres, colhendo o arroz, base de sua aliementação.
Infelizmente, porém, muitas ruas secundárias que desciam da cidade para o campo eram de terra. Não eram, portanto, ideais para se caminhar. Afinal, as laterais desses caminhos sem calçadas, na calada da noite, serviam de banheiro público a céu aberto. Inútil dizer que o cheiro pela manhã não era dos mais agradáveis.

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As praças medievais de Bhaktapur

As praças pavimentadas com pedras eram muito bonitas, com templos um ao lado do outro. Bons lugares, portanto, para tomar fôlego ou comer uma fruta comprada de vendedores que espalhavam seus cestos no chão. Logo, frequentemente me perdia naquele labirinto de ruas, praças, palácios e templos, sem saber mais o caminho a tomar, num lugar onde obter qualquer informação era difícil.
Em Bhaktapur, raros eram os que entendiam alguma palavra em inglês. Mas, eu não ligava se me perdesse. Afinal, cedo ou tarde, acharia o caminho. Ou, ainda mais, acabaria desembocando em uma das três ou quatro grandes praças, ou seja, pontos de referência da cidade.

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Fotografando na névoa

Como ia me deitar pouco depois das dez horas da noite, quando a luz acabava, acordava, assim, muito cedo. Apenas resistia um pouco a sair da cama porque o frio era bravo. Mas, tomando coragem, encomendava meu costumeiro café da manhã, composto de chá com leite, pão com manteiga e ovos fritos, e saía para perambular. Assim, caminhava indolente pelas ruas e praças, em meio aos templos envolvidos na pesada névoa matinal.

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Cheguei a ficar deprimido vendo os belos templos da cidade tão mal conservados. Mais tarde, porém, Bhaktapur, inscrita no Patrimônio da Humanidade da UNESCO, pôde, com a ajuda de entidades internacionais, ter alguns de seus monumentos muito bem restaurados.
Numa das praças, em frente ao enorme templo de Bhairav, existia – e ainda existe – um pagode convertido em café: o Nyatapola.

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Do alto tem-se uma excelente vista da praça. À direita do café está o templo de Nyatapola, conhecido como “templo dos cinco andares”. Ele é dedicado à deusa hindu Siddhi Lakshmi. Seu acesso central se dá por uma escadaria protegida por figuras mitológicas.
(Nota do Autor: : Esse magnífico templo desabou durante o terremoto de 2015. Não sei, aliás, se será restaurado)

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Algo ameaçadores, aliás, esses ídolos servem para proteger o lugar e lembram os que existem em várias culturas. Por exemplo, nos drakars vikings, nos barcos do rio São Francisco, nas aldeias de Bali. Seria o inconsciente coletivo?
O Nyatapola Café era um dos lugares mais agradáveis para se comer na Bhaktapur daquela época. Na praça ficam igualmente inúmeras lojas que vendem de tudo, até antiguidades.

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