Livro: A Vaca na Estrada

021 De Paris a Katmandu de carro – “A Vaca na Estrada” – Caxemira 1

Tudo o que precisávamos

A Caxemira nos tentava. Tínhamos, aliás, encontrado europeus que acabavam de voltar de lá. Contaram-nos que se hospedaram em um houseboat em um dos lagos de Srinagar, a capital regional. Segundo eles, lá chovia pouco, a monção dava uma trégua em regiões de montanha. E, ainda mais, o calor nunca era excessivo. O clima era agradável. Era, portanto, tudo o que precisávamos.
Abaixo: Mapa da Caxemira

Duas viagens

Na verdade, estive duas vezes na Caxemira. A primeira nessa viagem com Bernard. Reconheço que a Cachemira indiana me encantou. Ou seja, amamos suas paisagens de montanha, suas cidades e lagos. Posteriormente, uns cinco anos depois, voltei. Desta vez com uma companheira brasileira, (Dedé). Aliás, foi com ela, nessa ocasião, que percorri uns vinte países na Europa e Ásia durante um ano.

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O turismo e a instabilidade política regional na Caxemira

A Caxemira, atraía muitos viajantes estrangeiros até a década de 1980. Posteriormente, porém, a situação política entre a Índia e Paquistão se agravou. Ou seja, havia o risco de atentados terroristas. Afinal, grupos radicais separatistas agiam por lá. Eram muçulmanos apoiados pelo Paquistão. Enfim, isso assustou e acabou por afugentar os turistas. Se existe algo que não combina com turismo é a guerra.

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Situação tensa

Depois de mim, conhecidos estiveram por lá. Não era mais a mesma coisa, a situação estava tensa. Assim, meus amigos relataram sobre uma intensa atividade militar que rolava em Srinagar. Em toda esquina havia soldados armados e ninhos de metralhadoras protegidos por sacos de areia. E, ainda mais, blindados do exército indiano patrulhavam as ruas daa capital do estado.

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Caxemira, região muçulmana integrada na marra à Índia

A Caxemira, sempre teve maioria muçulmana. Era, porém, governada por um príncipe hindu que pretendia constituir-se monarca de um país independente. Não deu certo. Ou seja, a região acabou anexada à Índia após uma tentativa do Paquistão de integrá-la à força. Assim, o marajá, assustado, assinou sua incorporação à Índia. Tropas enviadas de Nova Delhi às pressas garantiram assim o domínio indiano na região.

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O plebiscito que nunca rolou

Pelo acordo de paz assinado na época, um plebiscito seria posteriormente realizado. A questão, porém, ficou pendente. Em suma, com a Índia continuando a ocupar a maior parte do território da Caxemira. E, ainda mais, pouco disposta a realizar qualquer consulta popular. Assim, a disputa pela estratégica região resultou em uma guerra entre os dois países em 1965. Hoje os indianos consideram-na parte de seu território. Os paquistaneses, porém, não cessam de reivindicá-la e, igualmente, de insuflar movimentos separatistas islâmicos. Com isso a presença militar indiana na região é forte.

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Uma estrada cansativa

Essa primeira visita à Caxemira com Bernard, foi um dos pontos altos de nossa aventura de Paris ao Nepal de carro. Entramos na Índia pelo Pendjab, na planície. De Amritzar, subímos uma serra íngreme, cheia de curvas e, ainda mais, com muito trânsito de veículos. Nos contrafortes do Himalaia deparávamos, o tempo todo, com trechos desbarrancados ou, ainda mais, em conserto. Embora hoje essa estrada esteja muito melhor, naquela época, porém, dava medo. Os pesados caminhões Tata, eram um problema. Nós os veríamos depois em todo o país. Eram sempre pintados de cores exuberantes, com desenhos de tigres, divindades hindus e outros adornos. Os enormes veículos, ocupavam, assim, quase toda a via. Ainda mais, avançavam lentamente e, também tornavam as ultrapassagens perigosas.

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Blindados atrapalham o trânsito

Em certos trechos deparamos, ainda mais, com comboios militares que nos atrasaram a vida. Irritados, olhávamos para eles sem conseguir deixar de pensar no custo de cada blindado. Um valor suficiente para alimentar um monte de famintos, abundantes no país. No mundo todo, aliás! Para servem exércitos? É graças à guerra que a indústria de armamentos enche o bolso e inocentes são mortos. E ainda existem no Brasil políticos ignorantes que defendem liberação de armas… A função de uma arma é matar. Nos USA é liberada. Ou seja, por isso mesmo sempre lemos nos jornais massacres praticados em escolas principalmente. Invariavelmente por jovens imbecis de mal com a vida. Na França, onde eu vivia, isso praticamente não existe. Civis não podem ter armas de fogo.

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Os houseboates

Decididos a ficar na Caxemira algum tempo, resolvemos, portanto, alugar um houseboat. Pegamos um com dois quartos à beira do Nageen Lake, a uns 20 km do centro. Nesse lago mais afastado as águas eram muito limpas, transparentes mesmo. Ou seja, um dos lugares mais lindos que conhecemos na Índia. Era possível, inclusive, ver as plantas que cresciam no fundo do lago e subiam até a superfície.

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Um luxo, sem detonar nossos bolsos

Que diferença das águas amarronzadas do Dal lake junto à cidade, já poluído e sem graça! O Naggen Lake a uma meia hora do centro de Srinagar era outro papo. Aliás, em raros lugares durante essa viagem ficamos tão bem instalados. Ainda mais, por um preço pouco mais elevado do que os que pagamos nos hotelecos onde nos hospedáramos até então. Um luxo que não detonou nossas finanças.

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Férias da estrada

Tiramos, portanto, férias da estrada! Aliás, quando parávamos era sempre em lugares com tudo de bom. Conforto, vida barata, bom clima. Ou seja, como nessas montanhas tranquilas e bem instalados, como nunca..
A história dos houseboats é, aliás, curiosa. Quando os ingleses chegaram por lá, um marajá governava a região. Fora obrigado a aceitara presença dos britânicos. Quis, entretanto, ser esperto. Dessa forma, proibiu-os de construir sobre o solo da Caxemira. Os ingleses foram, entretanto, ainda mais espertos. Não podiam construir em solo da Caxemira, mas o marajá não mencionara os lagos. Assim, a solução adotada foi, portanto, morar em casas flutuantes nos lagos.

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As mordomias dos houseboates

Ao alugar um houseboat, estavam também inclusas na diária todas as mordomias. Faxineiro, cozinheiro etc. Servia até mesmo um super british chá das cinco. Aliás, deixávamos os quartos de pernas para o ar e sempre os encontrávamos impecáveis ao voltar. Cada house-boat dava igualmente direito ao uso de uma sikara, uma canoa de fundo chato, comum ali. Enfim, tudo super-prático.

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A sikara

Afinal, a sikara era a melhor maneira de percorrer o Naggen Lake, seus arredores e seus lindos jardins flutuantes. Utilizávamos igualmente os canais para alcançar à cidade de Srinagar. A capital é igualmente o principal centro urbano da Caxemira. Aliás, a cidade de Srinagar era também super simpática, com suas casas de madeira e um inegável ar provinciano que encantava os visitantes.

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Os house-boats por dentro

Essas residências flutuantes tinham geralmente dois ou três quartos, cada um com seu banheiro completo, salas e copa-cozinha, onde empregados vinham nos preparar as refeições. Degraus da varandinha de acesso levavam à beira d’água, onde ficava amarrada nossa sikara, e, de outro, havia também uma pontezinha de pranchas que levava à margem do lago. Esse que pegamos era antigo, da época dos ingleses. Assim, era decorado com lindos móveis, tapeçarias e porcelanas.

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Mr. Jalal, um raposão

Às vezes Bernard e eu jogávamos sete e meio. Logo, Mr. Jalal o dono do house-boat, interessou-se, e nós ensinamos o jogo a ele. Explicamos: jogávamos barato, mas a dinheiro. Ou seja, apenas um passatempo. Nas primeiras jogadas, Mr. Jalal perdeu; depois, passou a ganhar sempre. Quando ele pegou a banca, Bernard e eu fizemos seis e meio. Apostamos o máximo combinado. Nosso bom velho nos puxa, porém, um meio, em seguida um sete.

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Mr. Jalal e as graças de Allah

Entreolhamo-nos. Ele sorria discretamente enquanto recolhia seu punhado de rúpias. Quando, novamente, pintou um jogo bom, perdemos outra vez. Jalal ia embolsando nossas rúpias nas jogadas mais quentes. Mesmo atentos não conseguíamos, entretanto, nunca flagrá-lo nos roubando. Ou seja, o velho gozava das boas graças de Allah, que o ajudava a vencer os infiéis. Ou havia algo errado ali. Assim, depois de perder uns dez dólares cada um, desistimos. Nossa permanência na Caxemira, acabaria, dessa forma, saindo muito cara!

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O Naggen Lake, centro de um pequeno mundo

Passamos, assim, uma três semanas naquele houseboat. Fazíamos demorados passeios pelo lago também em embarcações maiores,. Eram as”sikaras-táxis” onde acabávamos por também remar. O final da tarde, sobretudo, nos reservava sempre um esplêndido pôr-do-sol.
Raramente chovia. Afinal, as monções sempre atingem mais moderadamente a Caxemira do que as planícies. Além disso, estávamos também no final da estação das chuvas.

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Ficar em casa ou sair pelo lago

Quando resolvíamos ficar “em casa”, tomávamos sol no terraço superior do barco. Outras vezes saímos pelo lago. Logo descobrimos que por algumas rúpias, íamos até mesmo esquiar. As lanchas que puxavam os esquiadores partiam de um grande house-boat ancorado no meio do lago. Fora transformado em clube. Foi uma surpresa praticar um esporte relativamente caro por preço tão acessível nesse fim de mundo oriental. A Caxemira foi o único lugar em que vi hippies cabeludos, cheios de colares e brincos, dedicando-se ao esqui aquático ou alugando lanchas.

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O mercado vinha até nós

Não precisávamos ir ao mercado. Ou seja, o mercado vinha até nós. Assim, o dia todo passavam comerciantes em sikaras cobertas, oferecendo de tudo. Em suma, biscoitos, frutas, papel higiênico, geléias, aspirina, mel, manteiga, roupas bordadas, tapetes, cigarros – e até haxixe, tolerado por lá naquele tempo. O visual mais bonito era o das sikaras dos vendedores de flores, transbordantes de rosas, margaridas, cravos, e dezenas de outras espécies que nós não conhecíamos.

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Pur mixed silver

Quase todos os dias passavam também mercadores de objetos de madeira esculpida, prata ou, simplesmente, metal branco, que garantiam, entretanto, ser prata pura. Juravam, assim, por Maomé que estavam perdendo por nos vender tão barato, que estavam tirando o pão da família, apenas para nos agradar e que só nos faziam preços tão especiais por sermos good friends

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Uma anexação mal recebida

Conversando com o povo do lugar, ficamos sabendo que a anexação pela Índia da maioria da região habitada por muçulmanos não fora bem aceita. As pessoas com quem falamos nos confiaram, porém, seus pontos de vista. Falavam num tom que, sem chegar a ser um sussurro de conspiradores, era suficientemente discreto. Ou seja, entendemos que esses assuntos da política regional deviam ser tratados com certo cuidado por lá.

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