Livro: A Vaca na Estrada

028 De Paris a Katmandu de carro – “A Vaca na Estrada” – Benares

Benares, visita obrigatória

Benares, a leste de Khajuraho era a última cidade indiana de real interesse na Índia, em nosso caminho com destino ao Nepal. Ou seja, o fim da interminável viagem pelas planícies inundadas pelas últimas chuvas de monções. Somente o clima continuava ainda quente e a umidade incomodava. Mas, Benares, era uma visita obrigatória.
Abaixo: Mapa da região de Benares

O acidente

Sempre que nos aproximávamos de uma cidade, era sempre a mesma coisa: começava a chover. Para variar, foi igualmente o que aconteceu quando Bernard e eu nos aproximávamos de Benares, cidade também conhecida como Varanasi.
Enfim, a chuva, que nos acompanhou em um bom trecho da estrada, e as vacas soltas pelos acostamentos quase fizeram nossa jornada terminar mal. Bernard, que estava dirigindo e ia ultrapassar um caminhão voltou-se para mim:
Posso ir?

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De Paris a Katmandu de carro – “A Vaca na Estrada” – Benares

A passagem estava livre. Mesmo com a chuva forte, pude ver que não vinha ninguém em sentido contrário.
Pode! — Ele entrou na pista da direita e acelerou. Nesse momento, porém, uma vaca invadiu a estrada. Só tive tempo de gritar:
Breca!
Ele não vira o animal entrando na pista.
O que? — gritou.
Uma vaca na estrada! Breca!

Bruta susto

Bernard, pego de supresa, afundou o pé no freio. Quase bati a cabeça no vidro. O carro foi, assim, parar no acostamento e quase capotou. Poderíamos ter nos machucado seriamente ou mesmo morrido. Desencarnar em Varanasi talvez seja o sonho de todo hindu, mas não era entretanto o nosso. As mãos de meu amigo gaulês tremiam. Preferi, assim, pegar o volante.

De Paris a Katmandu de carro – “A Vaca na Estrada” – Benares – vaca dormindo na estrada

Animais na pista, um problema em toda a viagem

Foi o pior, mas não o único susto que as vacas e os búfalos indianos nos proporcionaram naquela viagem. Víamos igualmente os herbívoros no acostamento, deitados preguiçosamente no meio da pista. Era só nos aproximarmos para que, de repente, resolvessem, sem mais nem menos cruzar a estrada. Ou, por exemplo, tendo praticamente concluído a travessia, resolvessem, sei lá por qual motivo, voltar.

Mas, não eram apenas vacas. Havia de tudo cabras, carneiros, ou também animais menores como galinhas ou cães. Às vezes deparávamos igualmente com um elefante ou um camelo bem no meio da estrada. Ou seja, isso sem falar em motos, bicicletas, pessoas… Em resumo, não era nada fácil guiar nessas estradas.Tínhamos, portanto, que estar atentos o tempo todo.

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A principal causa dos acidentes

Antes de mais nada, é bom saber que um bom número de acidentes, muitos deles com mortes, ocorrem na Índia. São resultado da colisão de veículos com animais de grande porte. Ou seja vacas, búfalos, camelos e, mais raramente, elefantes. Em outros momentos tínhamos pela frente meia dúzia de animais parados bem no meio da estrada: sentados, deitados, ruminando.

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Ah, essa vacas…

Já vi vacas perambulando por mercados, onde sempre tentam roubar um legume, ou até mesmo entrando em farmácias, e mesmo em hoteizinhos… Era, portanto, um inferno fazê-las sair da frente. Mesmo buzinando e quase encostando o para-choques nos bovinos! Bernard teorizava: as vacas na Índia são exasperantes e sumamente folgadas justamente por se saberem sagradas…

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Benares/Varanasi

Eu não apenas havia lido muito a respeito de Benares — que também se chama Varanasi —, a cidade sagrada á beira do rio Ganges, onde ocorrem as cremações. Tinha igualmente ouvido todo tipo de história sobre a cidade. Alguns a consideravam a “verdadeira Índia”, o lugar onde as tradições hindus conservam todo seu peso. É onde, igualmente, as castas são mais nítidas e as vacas, ainda mais sagradas.

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Benares, nem todo mundo curte

“Não se pode dizer que se conhece a Índia sem conhecer Benares”, disseram-me uma vez. Pode ser exagero, mas Benares é realmente uma cidade com muitas particularidades menos comuns no resto da Índia. Ao mesmo tempo, porém, não agrada a todo mundo. Uma inglesa que eu encontrara havia me garantido, por exemplo, que fora o lugar mais nojento e deprimente em que estivera em sua vida…

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Conferindo Benares

Fui conferir. Varanasi é banhada pelo Ganges, o rio sagrado dos hindus, que nasce no Tibete. limpo e puro. Depois atravessa o norte da Índia e desemboca, imundo, no Oceano Índico. Enfim, desde tempos ancestrais, o Ganges tem vital importância para as populações ribeirinhas. As populações rurais dependem do rio para a fertilização das lavouras. Dessa forma, suas inundações irrigam milhares de quilômetros quadrados nas duas margens. Por tudo isso, o Ganges, tido como uma benção dos deuses. O Ganges, portanto, está para os indianos como o Nilo está para os egípcios. Ainda mais, os hindus acreditam que banhar-se nele purifica a alma de todos os pecados. Essa crença atrai, assim, multidões à Benares durante todo o ano. Durante os festivais religiosos esse público é ainda mais numeroso.

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O contato com Benares

Mais pelo inusitado da experiência do que por economia, em Varanasi, Bernard e eu nos alojamos em um mosteiro budista. Por algumas rúpias hospedavam igualmente viajantes estrangeiros. Era um lugar de sobriedade monástica. Tínhamos em nosso aposento duas camas de madeira, uma cadeira e uma mesinha. Mas, ao menos —ao contrário de outros lugares baratos —, era de uma rigorosa limpeza. Ou seja o que realmente importava. No dia seguinte deixamos o carro e saímos a pé pela cidade, que lembrava a Velha Delhi: a mesma bagunça, só que pior.

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Sujeira e vacas

Acredito que a impressão desagradável que tivemos de Varanasi foi em parte devida igualmente a essas eternas chuvas de monções. A cidade se tornava ainda mais escura, cheia de poças d’ água barrentas. Em suma, suja e mais feia do que realmente era. Também nos incomodaram as vacas que circulavam pelas ruas estreitas. Ficavam fuçando e espalhando o lixo e atrapalhavam a passagem estreitas.

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Los hermanos

Em um restaurante de mochileiros, encontramos dois argentinos. Chegavam do Nepal e iam para Delhi.
Tive, aliás, a sensação de estar encontrando vizinhos. Trocamos abraços, como amigos que não se vêem há tempos. Já viajei com argentinos e convivi com eles em diferentes ocasiões. Sempre os achei gente fina. São divertidos, e nos damos bem. Não existe, aliás, nada mais parecido com um paulistano do que um portenho. A começar, aliás, pela forte influência italiana de ambos.

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As dicas sobre o Nepal

Ambos nos passaram boas dicas. Uma informação importante que nossos amigos portenhos nos passaram foi que as monções no Vale de Katmandu estavam terminando. O calor igualmente diminuira, as temperaturas eram agradáveis. De qualquer modo, a capital nepalesa fica a 1.500 metros, seu clima, além de mais fresco, é o igualmente bem mais seco do Índia.
Os dois nos falaram bastante sobre o Nepal. Afirmaram que amaram o país muito mais do que a Índia. Apaixonaram-se por suas cidades medievais repletas de belíssimos templos e, igualmente, por suas paisagen de montanhas com picos nevados. Em suma, uma viagem que, como descobriríamos mais tarde, nada tinha a ver com a Índia

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Os gaths

Os argentinos, como nós, após o inevitável choque cultural, estavam igualmente mais à vontade diante de certas cenas do dia a dia. Todo esse ajustamento é, aliás, cheio de altos e baixos, com momentos em que julgamos a Índia detestável e outros em que o país nos embebe de sua magia e de suas cores. Ou seja, é quando achamos tudo profundamente poético e belo.

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O ritual da cremação

Continuando a caminhada, chegamos aos gaths — os degraus às margens do Ganges. Ali deparamos com vários corpos embrulhados em tecido. Branco para os homens, rosa para as mulheres — esperando pela cremação, que obedece a todo um ritual.
Em primeiro lugar o cadáver é lavado e a família toda toma um banho ritual em frente à pira. Depois, uma pelota de manteiga é colocada na boca do morto, já depositado sobre a pira. Esta é acesa por seu filho mais velho.
No mundo ocidental ninguém vê um corpo sendo cremado. O caixão desaparece solenemente rumo ao forno crematório, enquanto as pessoas esperam em um salão decorado com flores. A despedida hindu, para nossos parâmetros, é entretanto chocante.

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Um espetáculo que pode chocar

Os homens da família assistem a tudo: aos cabelos que se incendeiam, ao crânio que explode… É duro de ver. As cinzas são jogadas no rio sagrado. Pedaços de corpos sem-icalcinados também eram atirados no Ganges. Isso podia ocorrer quando a família não tinha dinheiro para comprar lenha suficiente para a cremação completa. Enfim, existe hoje, num dos ghats, um crematório elétrico, usado principalmente pelos pobres. Eram igualmente jogados ao rio, amarrados a uma pedra, sem cremação, os corpos de sadhus, leprosos e bebês natimortos.

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O ganges leva tudo embora

Já contei que na Índia, a família da noiva costuma proporcionar um dote à do noivo. Isso sai caro. Dessa forma há quem seja obrigado a vender sua humilde propriedade agrícola para poder casar uma filha. Assim, afogar bebês do sexo feminino no Ganges é um modo cruel, mas seguro, de evitar futuras dívidas dessa espécie.
A prática não é entretanto generalizada, mas isso ainda ocorre ocasionalmente. Vacas sagradas também são jogadas no rio quando morrem. Tudo isso o Ganges leva embora, rumo ao mar, depurando dessa forma, a Índia de seus pecados e de seu lixo.

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As sagradas águas do Ganges

Francamente, não sei como pode alguém entrar naquelas águas ou bebê-las. Isso seria algo que nunca me passaria, nem de longe, pela cabeça. A maioria dos hindus, porém, bebiam a água por lá. Muitos levavam para casa garrafinhas dela, de cor suspeita. Em suma, da mesma forma que romeiros aqui no Brasil voltam de Aparecida do Norte com recipientes cheios de água benta. Enfim, pode ser que apenas uma pequena parcela dos católicos acredite que a água benta de Aparecida produz milagres. Ela, porém, tem uma grande vantagem sobre a água do Ganges: não provoca infecções, nem cólera.

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Os riscos das águas do Ganges

Autoridades sanitárias indianas são, porém, mais realistas. Sabem muito bem que é preciso despoluir o Ganges e que o consumo ritual daquela água é uma péssima prática. Ou seja, o contato e ingestão da água do Ganges é responsável por um sem-número de doenças que dizimam principalmente as crianças. O rio sagrado dos hindus recebe, além dos mortos, igualmente parte dos esgotos de Varanasi, uma cidade de 2 milhões de habitantes.

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Ganges, milagroso?

Talvez o rio Granges tenha realmente seu lado meio milagroso. Assim, eu sempre me perguntei como um rio tão sujo, poluído, que recebe esgotos e águas servidas de Benares, uma cidade, aliás, bem grandinha, não provoca ainda mais contágios. Além dos banhos rituais, já motivo para preocupações, como já mencionamos, boa parte dos peregrinos ingerem essas águas.

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O delírio ocidental

Vi também, pelo menos duas vezes, jovens ocidentais do gênero místico-deslumbrado banhando-se no Ganges. Uma espanhola maluquete que ia se banhar no Ganges me disse que fora à Índia para se converter ao Hinduísmo. Tive dificuldade em explicar para ela que o Hinduísmo não aceita conversões; a pessoa nasce hindu. A moça me pareceu surpresa. Olhou-me, boca aberta, ar desolado. Disse-lhe que devia ter se informado sobre isso ainda na Espanha.
Enfim, você pode pelo menos absorver a filosofia
Conheci, igualmente, perto de um dos ghat, um casal de norte-americanos acompanhados da filha, uma menininha loira de uns cinco anos. Declararam-me que estavam vivendo a maior felicidade de suas vidas. Afirmaram, com ar sonhador, que não estavam felizes apenas por terem chegado a Benares, mas também porque no dia seguinte iriam encontrar seu guru.

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Oh, we are so happy

Oh, we are so happy! So happy!
Por um momento, pensei que fossem levitar.
Vocês falam como se ele fosse um deus.
Olharam-me com a mal disfarçada comiseração daqueles que encontraram as respostas:
Mas ele é! — disse-me a moça, enquanto seu marido desviava os olhos para cima.
Enfim, à sua moda.
Confesso que não entendi como um guru se torna deus à sua moda.
Desculpem-me, eu não sabia.
O rapaz suspirou, desconsolado e, num ato de caridade, anotou para mim em um papel o nome do lugar onde o guru recebia seus discípulos. Bernard, que estava do lado, perguntou:
— Paga-se para conhecer o guru?
É sempre bom contribuir com algo.

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Pobrecita…

Levantaram-se, pegaram a garotinha pela mão, despediram-se e caminharam em direção ao rio, dando início a um ritual que até aos hindus pareceu exagerado. Bernard, os portenhos e eu nos entreolhamos.
Pobrecita — murmurou um dos portenhos ao ver a criança entrar naquelas águas imundas. Num primeiro momento pensamos em fazer algo para impedir, mas não tínhamos como. Afinal, a garotinha estava com seus pais. Ainda mais, por ali, todos os indianos faziam o mesmo com seus filhos. Os peregrinos hindus garantem que, como o rio é sagrado, sua água é portanto sempre pura. Esse papo entretanto não animou nenhum de nós a sequer molhar a ponta de um dedo ali naquelas águas. Como disse um dos portenhos: “Mira vos, yo prefiro me quedar con mis pecados.

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Melhor de barco

Nas margens, perto do local das cremações, o cheiro de carne queimada de corpos sendo cremados, nos embrulhava o estômago. Descobrimos uma boa solução. Barganhando com um barqueiro, conseguimos assim que ele nos levasse em seu bote visitar aquele trecho das margens do Ganges, em frente aos ghaths. Em inglês razoável, ele nos explicou também sobre as cerimônias.

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As margens do Ganges vistas de um barco

Assim, mostrou-nos uma família banhando seu morto nas águas do rio antes da cremação. Era a purificação. Depois identificou alguns dos palacetes às margens do Ganges. Ou seja, eram construídos por marajás e outros poderosos da velha Índia. Era onde esperavam a morte, ao lado do Ganges, quando a sentissem por perto. Para os hindus, quem morre em Benares não reencarna. Ou seja liberta-se, portanto, definitivamente do fardo de outras vidas, do ciclo de reencarnações a que chamam samsara.

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