Algumas representações de divindades hindus podem parecer estranhas para o estrangeiro. Por exemplo, Ganesh, filho de Shiva e sua esposa Parvati, um deus com cabeça de elefante. Ou, igualmente a aterrorizante Kali, a Sangrenta, que usa um colar de crânios humanos em volta do pescoço. Uma hora, enfim, comentei isso com meu amigo Ganga, que respondeu:
— Quando criança, viajei pela Europa com meus pais. Ao visitar uma igreja pela primeira vez, vi também uma imagem horrível, que me deixou apavorado.
— Qual? — perguntei, curioso.
Ele me olhou com ar maroto:
— Um homem seminu, morto, banhado em sange, pregado em uma cruz, com espinhos fincados na cabeça.
Balancei a cabeça lentamente. O que ele dizia tinha sentido: a imagem de Cristo crucificado de fato é impressionante, pelo menos para os não cristãos.
Mesmo assim, não resisti em lhe perguntar:
— Ganga, entre nós, sério mesmo, dá para acreditar em um deus com cabeça de elefante?
Olhou-me divertido:
— Tanto quanto acreditar ao pé da letra que Eva foi feita com a costela de Adão, que o casal foi enganado por uma cobra falante ou que uma virgem foi fecundada por um pombo…
Para os verdadeiros sábios hindus, “Deus” é algo abstrato. Falam em um deus supremo de forma vaga. Assim com a própria criação e os vários aspectos da vida se misturam com o divino.
O hinduismo das elites
Nesses papos em Jaipur com Ganga, bebericando um chá ao com gengibre, eu levava longos papos com Ganga. Afinal, é homem, com uma formação totalmente diversa da minha, mas que tinha estudos. E, ainda mais, percebi, igualmente que lia muito. O que fui percebendo nesses papos, aliás, é que há um Hinduísmo da elite, dos brâmanes, dos pensadores.
Talvez nenhuma outra religião apresente um fosso tão grande e marcante entre o popular e o elitista. Um lado da filosofia hinduísta me parece, porém, bem interessante. Apesar de a trindade hindu compreender Brahma, o que cria; Vishnu, o que conserva; e Shiva, o que transforma ou destrói, só os dois últimos são realmente cultuados. Em suma, Brahma fez seu trabalho e saiu de cena. Sobram, dessa forma, duas forças, uma conserva, outra transforma, mesmo, porém, que para isso tenha que destruir.
Os princípios básicos da vida
Se pensarmos no assunto vemos que todos aspectos da vida são igualmente regidos por esses dois princípios. Aliás, até na política: conservadores e revolucionários. Na física uma força puxa, outra afasta, n o eu de cada um (paro, avanço ou recuo?), nas relações amorosas (continuo ou mando tudo para o espaço?). Assim, no equilíbrio cósmico, uma força — Vishnu — tenta conservar e outra — Shiva — busca transformar, destruindo, se for preciso. É o equilíbrio de força do Yin-Yan, os dois contrários, o masculino e o feminino, a vida e a morte, o corpo e o espírito.
Deus, deuses, como fica?
O mais curioso entre os hindus é que apesar de serem politeístas, falam, porém, em “Deus”, de forma genérica. O que acontece é que o “Deus” a que se referem é uma espécie de somatória de todas suas diferentes divindades. Enfim, depois de muitas conversa, meu amigo hindu e eu nos colocamos de acordo pelo menos num ponto. Isso que as pessoas chamam “minha fé” é, em suma a Fé da cultura onde você nasceu e na qual foi batizado.
Os hindus já nascem dentro dessa religião, mas nas demais, como Ganga levantou, isso também sempre acontece. Ou seja, as pessoas já chegam ao mundo dentro de uma fé, da mesma forma que vão se chamar João ou Maria, nomes não escolhido por elas. No Ocidente, é certo, existe alguma “mobilidade religiosa”. Dessa forma, as pessoas podem, portanto se converter a determinada fé, embora as que o fazem sejam, porém, minoria insignificante.
A prática é ninguém escolher nada
É evidente, porém, que poucos escolhem sua religião. Desse modo, você é católico, judeu, protestante, muçulmano ou budista porque nasceu numa família de uma determinada religião. Em suma, sua fé não foi uma escolha sua, resultado de uma reflexão sobre os dogmas que o guiarão pelo resto de sua vida. Em todas as religiões as crianças desde novas são simplesmente doutrinadas. Há quatro mil anos, no Egito, por exemplo, quando Cristo nem sequer nascera, todo um povo reverenciava deus pássaro-, deus-chacal etc. E ninguém achava estranho…
A fé adquirida aos cinco anos de idade
Em suma, o ser humano rezará frente a uma cruz, se for cristão; igualmente, ficará se inclinando em movimentos regulares roçando a testa no Muro das Lamentações, se for judeu ortodoxo; ficará de joelhos, fazendo flexões, voltado para Meca, se for muçulmano. Fará, enfim, o que lhes ensinaram aos cinco anos de idade, algo que chamarão até a velhice “minha fé”. E, ainda mais, se dizem felizes de ter nascido na “religião certa”. Só quero lembrar que o cristianismo, por exemplo, agrega menos de 40% dos que praticam alguma religião. E muitos nem praticam nem se interessam. A família é católica (como é meu caso), mas eu só frequento igrejas para apreciar sua arquitetura…
Maomé, Moisés, Jesus, Umbanda…
Ou seja, cada um, em todas as religiões vai acreditar no que lhe ensinaram quando crianças, quando talvez nem soubesse ler. Aí, vai passar a seus descendentes que Maomé, Moisés ou Joseph Smith subiu a montanha, ou a montanha foi até ele, sempre sozinho, sem testemunhas oculares. E que Deus que, como sabemos, é ocupadíssimo, numa entrevista exclusiva, transmitiu-lhe um monte de ensinamentos compilados posteriormente por terceiros em livros sagrados. Ou seja, aquelas tais verdades nas quais todos devem acreditar piamente.
Hinduismo, religião sem profetas ou fundadores
O Hinduísmo é diferente, é uma religião sem profetas ou fundadores. Isso é, entretanto, estranho para os ocidentais. A realidade é que cada um acredita que sua religião ou sua crença, seja qual for, é a certa. Alguns, embora não confessem, no fundo acham que todas as demais são um amontoado de bobagens. Em suma, é como cada religião vê as demais… Todas são absurda, exceto a sua.
Bernard contou-me sobre um rapaz de família muçulmana que conheceu em Paris, marxista da linha chinesa — quase uma aberração cultural — que nunca pusera os pés em uma mesquita. Na parede da casa do rapaz, frases de Mao Tsé-Tung e o retrato do próprio, em lugar de honra, substituíam os habituais versos do Corão. Como seu ateísmo o impedia de acreditar em Alá, trocou Maomé por Mao.