Dias depois chegamos à fronteira iraniana.
Antes de mais nada, vamos entender: o Irã atual corresponde à lendária Pérsia, sede de um dos maiores impérios da Antiguidade. Ou seja, quatrocentos anos antes da era cristã, imperadores como Dario e Xerxes, seu filho, expandiram seu domínio por boa parte da região.
Abaixo: Mapa do Irã
Império persa detido pelos gregos
Assim, foram expandindo seu império e chegaram a ameaçar a Grécia, onde foram finalmente detidos. Imaginemos que os persas tivessem vencido os gregos. É provável que a história do mundo ocidental, herdeiro da civilização greco-romana, fosse bem diferente. Aliás, como cientista social sempre penso nisso.
Talvez em todo o Ocidente as pessoas falassem outras línguas, se vestissem com outros tipos de roupas. É igualmente possível que a sociedade fosse organizada de modo completamente diverso. Quem sabe a democracia, outra herança dos gregos, nunca existisse. É possível que o mapa político mundial fosse outro e que, mesmo os países tivessem nomes e limites em nada semelhantes aos atuais.
Monarquia autoritária
A Pérsia sempre foi governada por monarcas autoritários. O Irã que visitei, governado pelo Xá Reza Pahlevi, não fugiu, portanto, à regra: era uma ditadura absolutista odiada pela maioria do povo. Ou seja, não existia liberdade de imprensa, os direitos humanos eram uma piada, as prisões estavam lotadas. Dessa forma, com mão pesada, o Xá tomara medidas que visavam diminuir o poder dos aiatolás, tentando modernizar o país, que se tornara cada vez mais laico, sobretudo a capital, Teerã.
Era clara a dualidade: havia assim, o iraniano moderno, de classe média, de ideias liberais, que aparentemente não dava a mínima bola para as pregações dos aiatolás. A maior parte da população atrasada dos campos e das cidades, porém, pouco usufruía dos benefícios dos royalties do petróleo. Ou seja, da modernidade e da melhoria em sua qualidade de vida.
Modernidade só para alguns
Esse me parece ter sido, aliás, o grande erro da monarquia, já que foi o povão ignaro, deixado à margem do progresso, que mais abraçou as teses fundamentalistas. Ao invés de estender a todo o país os benefícios do crescimento econômico e tentar mudar “corações e mentes” o regime do Xá partiu, porém, para a repressão e para uma ocidentalização forçada.
Dessa forma, o que havia, portanto, em comum entre a classe média moderna e a massa influenciada pelos aiatolás era o ódio ao regime tirânico do Xá. Ou seja, todos queriam uma revolução. Foi, aliás, sobretudo o repúdio a Reza Pahlevi que levou boa parte da oposição democrática e liberal, bem como da esquerda, a apoiar o aiatolá Khomeini. Em suma, acreditavam na possibilidade de uma democracia na qual as diferentes tendências seriam, assim, representadas.
Grande engano
Bastava, porém, atentar para a origem de Khomeini, ativista político radical, homem criado em uma família profundamente religiosa. Em outras palavras, acreditava que tudo, mesmo a governança de um país, devia se basear na aplicação estrita das leis islâmicas. Era ela que devia também nortear os comportamentos, as relações familiares e igualmente o dia a dia das pessoas.
Como acontece com quase todas as revoluções — ao menos durante suas fases mais cruéis — trocou-se, portanto, um mal por outro. Foi o que aconteceu com o Irã, que se tornou uma ditadura religiosa disfarçada, cada vez mais repressiva. Dessa forma, um país norteado pela lei islâmica e as pessoas vigiadas. Assim, mulheres eram (e ainda são!) detidas nas ruas pela polícia feminina por não terem coberto “decentemente” os cabelos com o chador. Ou ainda mais, por usarem roupas incompatíveis com os padrões.
Mesmo eventos prosaicos em um país como o Brasil, como, por exemplo, uma reunião entre amigos, são, no Irã, quase subversivos. Não se pode, portanto, dançar nem ouvir música ocidental. A pequena-burguesia moderna e liberal tenta escapar desse controle e levar uma vida normal, driblando essas proibições. Entretanto, volta e meia, quando os Guardiões da Revolução Islâmica aparecem, vai todo mundo preso.
A fronteira turco-iraniana
Do lado turco, na fronteira com o Irã, nosso carro foi inspecionado. Ao verem o amassado, logo nos perguntaram se o acidente ocorrera no país. Negamos. Se disséssemos que tinha sido na Turquia, teríamos direito a toda uma nova investigação.
— Bulgária…
O oficial de alfândega abriu um grande sorriso.
— Os búlgaros dirigem muito mal.
Confirmei:
— Guiam como loucos!
A fila de caminhões e carros do lado iraniano da fronteira era interminável. Dessa forma, perdemos mais um tempão nas formalidades alfandegárias, sob um enorme retrato do Xá olhando todo mundo com ar severo, até podermos prosseguir nossa viagem.
Um pára-lama suspeito
Os viajantes europeus igualmente, quando viam os sinais do amassado no pára-lama do Renault, também nos perguntavam sobre o acidente. Tivemos, assim, que contar a mesma história uma dezena de vezes. Aliás, todo mundo ouvira falar de turistas que sofreram acidentes na Turquia e ficaram mofando em prisões mais de um ano. E prisão turca naquela época… Bem, quem assistiu Expresso da Meia-Noite, um velho clássico do cinema, deve saber muito bem do que estamos falando
.
Numa cafeteria dessa fronteira, conhecemos três francesas de Marselha, com o sotaque característico do sul da França, muito engraçado.
Eram três figurinhas duras na queda, rodando num Citroën 2CV. A única coisa que tiveram que trocar desde Marselha fora a bateria. Esse carrinho de aparência primitiva, era porém, muito resistente e aguentou o tranco.
Após o café com elas, seguimos caminho retomando a estrada.
Erro burro
Tínhamos, porém, menos de meio tanque de combustível. Assim, propus que reabastecêssemos o carro na próxima oportunidade. Bernard ficou com preguiça de fazê-lo; não insisti. Foi, portanto, um erro.
A estrada, asfaltada e melhor do que as turcas, atravessava um vale muito largo,arenoso, tendo como fundo elevações azuladas. Dos dois lados do caminho, vez ou outra, víamos carneiros e cabras pastando sob a vigilância de pastores e seus canzarrões. Saltava, portanto, aos olhos que o país era ainda mais desértico do que a Turquia.
Depois de rodar por horas mais uma vez, com o vento de proa segurando o carro vimos o marcador de combustível inclinar-se lentamente para a marca de vazio.
Na banguela
Dessa forma, diminuímos a velocidade para 70 km/h, o mínimo possível para usar a quarta marcha sem que o motor falhasse. Aproveitamos, igualmente, os longos declives, nos quais desligávamos o motor e, em ponto morto, descíamos na banguela. Afinal, o movimento na estrada era mínimo e, isso, nesse caso, não era, portanto, perigoso. Nesses momentos ouvíamos apenas o sopro do vento cortando o silêncio do deserto. Assim, ocasionalmente apenas, passávamos ao lado de uma aldeia.
Uma região árida
Só paramos no topo de uma colina, onde chegamos no impulso. Do alto víamos os pastores e seus rebanhos. Como essa gente sobrevivia em uma terra tão árida, onde aparentemente as cabras tinham apenas um ou outro arbusto para se alimentar?
Depois, prestando atenção, distinguimos ao longe, com dificuldade, tendas e palhoças de adobe. As aldeias se confundiam, assim, com a paisagem.
Cães nervosos
Não percebemos, enquanto urinávamos junto a um rochedo, de costas para a estrada, que cães pastores corriam em nossa direção. Só os notamos quando, ao nos recompor, nos viramos e os vimos a algumas dezenas de metros de nós.
Apanhamos algumas pedras e jogamos nos bichos, mas não conseguimos detê-los, pois eram numerosos e grandes. Tivemos assim, que entrar correndo no carro, escapando por pouco de sermos mordidos. Cães assim, ferozes, podem matar uma pessoa.
E agora?
Olhei com o rabo dos olhos para os cães que ladravam furiosos lá fora. Bernard coçou a cabeça:
— Meu passaporte caiu quando corremos para o carro!
— E agora?
Calculamos, por consequência, que o melhor era deixar os cachorros concentrados em volta do carro. Afinal, se percebessem o passaporte, poderiam simplesmente abocanhá-lo e destruí-lo. Aliás, mesmo que manobrássemos o automóvel até o documento caído junto ao rochedo, seríamos, com certeza, mordidos ao colocar a mão para fora tentando apanhá-lo.
O truque que nos salvou dos cães
Lembramos, logo depois, de uma bisnaga de álcool que utilizávamos para desinfetar arranhões. Assim, abrimos uma fresta do vidro da janela que, nesse velho Renault 4L, abria-se lateralmente. Logo, o chefão da matilha saltou sobre a janela, tentando enfiar a ponta do focinho e nos morder. Gostamos de cachorros mas, com esses, tivemos que jogar pesado. Ou seja, a esguichada no focinho da fera funcionou bem demais.
Assim, o bicho saiu ganindo. Um segundo apareceu. Repetimos em seguida a manobra com ele e com os demais. A matilha logo recuou assustada. Bernard ligou o motor, ajeitou o carro e investiu buzinando forte sobre os bichos que, desmoralizados, se afastaram. Pudemos em seguida apanhar o passaporte. Foi, aliás, o tempo justo, já que os pastores, desconfiados de que tínhamos feito algo com seus bichinhos de estimação se aproximavam furiosos. Aproveitamos a descida e, acelerando, escapamos, portanto, das pedradas e dos cães.
Salvo pelas três mosqueteiras
Uns 20 km adiante, a gasolina acabou de vez. Foi em um lugar deserto, sem cabras, pastores ou cães. Viramo-nos um para o outro e tenho certeza de que pensamos a mesma coisa: como teria sido se o combustível tivesse acabado onde os cachorros nos atacaram? Saímos do carro, encostei no capô, bebi um gole d’água da garrafa que Bernard me passou. Olhei para ele.
— Por que não quis encher o tanque quando eu propus?
— Achei que ali era mais caro e que logo à frente haveria outro posto — disse ele, dando de ombros. Respirei fundo.
— Já reparou que cada vez que você resolve economizar nós nos ferramos?
Dois caminhões que passaram não quiseram parar. Uns dez minutos depois, ouvimos barulho de motor: era o Citroën das meninas de Marselha.
Meninas precavidas
As marselhesas não apenas tinham enchido o tanque na fronteira como possuíam um galão de reserva com o qual puderam nos socorrer. Bem mais sensatas do que nós.
Elas também queriam chegar a Tabriz antes do anoitecer, possibilidade cada vez mais remota. Estavam, portanto, contentes de seguir conosco, sentindo-se mais seguras, já que, na Turquia, tinham enfrentado problemas por viajar à noite em regiões desertas.
Lembrei-me de que na cafeteria da fronteira, ao nos despedirmos, tínhamos trocado beijinhos no rosto, como é comum na França e no Brasil. Dessa forma, despertando olhares de estranheza dos caminhoneiros da mesa vizinha. Não entendemos os comentários, mas Bernard confidenciou-me que devia ser algo do tipo:
— Olha aí as europeias vadias… Nem conhecem os caras direito e já vão se beijando.
Tabriz
Chegamos a Tabriz às nove da noite. Uma cidade grande e moderna. Ficamos, porém em uma periferia perto da estrada. Até acharmos um hotel, tomarmos banho — estávamos imundos —, esperarmos as meninas se arrumarem e descermos, a cidade foi como que apagando. Não havia mais restaurantes abertos. Tivemos que aceitar tomar um lanche no quarto delas, com biscoitos e frutas, além dos tomates e queijos que tínhamos em nosso carro.
Em homenagem às marselhesas, abrimos uma garrafa de um bom vinho Nuits-St-Georges que nos acompanhava desde Paris. Uma preciosidade em um lugar daqueles, e que guardávamos para o momento em que tivéssemos companhia adequada. Não foi um banquete, mas saciamos a fome. As meninas estavam interessadas em conhecer o Irã, o que já era uma aventura para as três.
Enquanto comíamos, elas nos contaram um pouco sobre sua viagem e aventuras pela Turquia.
Os momentos de apuros
Passaram apuros quando seu carro quebrou, ao anoitecer, no meio de uma estrada completamente deserta. Chegaram a ser cercadas por quatro jovens mal encarados. Escaparam de serem molestadas pela chegada de um ônibus de passageiros, o que fez os turquinhos baterem em retirada. Nas aldeias, como acontecia conosco, o carro delas era cercado por multidões. Uma vez a molecada atrevida começou a enfiar as mãos pelas janelas, até que um garoto deu um apertão no volumoso seio de uma delas.
Em um gesto rápido, a moça segurou-lhe o braço. Olhou bem para o moleque do lado de fora do carro e mordeu-o com força. O povo caiu na risada.
Encontrei garotas viajando sozinhas na Índia e em outros países do Oriente, mas chegavam de avião e logo arrumavam companheiros de viagem ocidentais. As marselhesas, entranto eram feras…
O lado moderno do Irã
À medida que nos aproximávamos de Teerã, o país mostrava sua outra face: o lado moderno, ocidentalizado, da pequena-burguesia enriquecida pelos altos preços do petróleo, com um estilo de vida quase europeu. Em suma, que não se diferenciava muito do que conhecíamos no ocidente. O trânsito na capital era igualmente bravo; carros e mais carros tomavam as ruas e avenidas.
Não existiam, entretanto, hotéis para mochileiros. Ou seja, a moçada “cabeça feita” não queria saber de um país repressivo. No Irã fumar um baseado podia significar uma longa temporada na prisão. Mesmo na época em que visitei o Irã, pouco antes da queda da monarquia, os cafés eram frequentados apenas por homens. Só em alguns hotéis de luxo, de clientela cosmopolita, onde fomos tomar uns drinques com as marselhesas, vi iranianas sem véu, bebendo cerveja.
Visitando um amigo iraniano
Naquela época, muitos exilados iranianos viviam em Paris, onde faziam faculdade e, dessa forma, acabavam conhecendo franceses, um povo aberto a contatos com outras culturas. Posso falar por mim: nos Estados Unidos, tive poucos amigos norte-americanos. Em Paris, entretanto, minhas amizades com franceses sempre foram muito mais numerosas.
Graças ao hábito de Bernard de manter em sua agenda “contatos locais”, assim como ocorrera na Turquia, procuramos por um ex-colega seu iraniano da faculdade. Já formado, e ganhando bem, ele tinha assim seu próprio apartamento decorado com bom gosto. O jovem morava sozinho e não era um “iraniano médio”. Estudara em Paris, morara também em Londres e odiava o regime do Xá. Fomos visitá-lo depois de nos hospedar em um hotel com nossas amigas marselhesas.
Iranianos cosmopolitas
Seu amigo iraniano estava com três amigas. Tratava-se de um pessoal cosmopolita, liberal e culto. As moças vestiam-se de modo moderno, e lembravam as brasileiras. Só usavam um lenço na cabeça, mas, “ousadas”, deixavam aparecer os cabelos.
Compartilhavam, aliás, das opiniões desse amigo de Bernard. Khomeini era considerado um mal menor em comparação com o Xá.
Era surpreendente, porém, que iranianos esclarecidos, não soubessem o que os esperava. Anos depois, Bernard me contou que seu amigo iraniano e quase toda a turma dele estavam novamente exilados em Paris ou em Londres. Ou seja, é triste que, seja sob os xás ou sob os aiatolás, pouco ou nada tenha mudado. Mais de três décadas depois, enquanto escrevia este livro, o Irã não saía do noticiário internacional, ora por suspeitas de fraudes eleitorais, ora pela prisão arbitrária de oposicionistas, ora pela violência contra mulheres e homossexuais. Sem falar, aliás, na polêmica questão nuclear, que dá pano para manga.
Um país de contrastes
Nas estradas do Irã, a paisagem era sempre a mesma: mais uma vez, pastos, rebanhos, cabras, pastores e cães – estes últimos, felizmente, só avistados de longe. Começamos logo a entender o país e os costumes conservadores dos iranianos em regiões rurais. Boa parte do território era ocupado por um grande deserto poeirento, com apenas algumas cidades maiores.
Ao entrar num restaurante, fomos barrados porque as francesas estavam de ombros de fora e Bernard e eu de bermudas, já que fazia um calor do cão. O dono, apontou para nossas bermudas e cuspiu no chão:
— No good!
Aprendemos posteriormente que bermudas são uma vestimenta mal vista desde o Afeganistão até a Índia. Homens decentes não andam de pernas de fora…
Ambições nucleares
Em 2010 as atenções da mídia internacional se voltaram para o programa nuclear iraniano. Já na época do Xá, o Irã, país de quase 70 milhões de habitantes, estrategicamente situado junto ao Golfo Pérsico, grande produtor de petróleo, tinha ambições de ocupar um lugar relevante no cenário internacional. Com o regime islâmico, essa vontade parece, aliás, ter sido reforçada.
A questão nuclear é, aliás, bem complexa. Ou seja, de um lado, o Irã sabe, que Israel, seu inimigo declarado, tem armas nucleares. É possível, aliás, que o governo islâmico pense: por que somente nós temos que ser inspecionados, por que não Israel? Embora o regime iraniano declare que deseja enriquecer o urânio para fins pacíficos, há, porém, desconfianças. As potências ocidentais, de seu lado, acreditam que o país pretende desenvolver um arsenal atômico. Israel também desconfia das intenções iranianas.
Sigam o relato:
Sigam esta aventura de carro pelas estradas da Ásia atravessando o Oriente mágico e éxotico que encantou milhares de jovens europeus. Uma experiência vivida pelo autor do livro “A Vaca na Estrada” por países como Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia, Nepal
Veja a continuação desta postagem: 06 De Paris a Katmandu de carro – “A Vaca na Estrada” – Afeganistão