Lúcio Martins Rodrigues
Nossa caravela
A travessia do mar oceano nos assustava. Nossa caravela media uns 120 pés de comprimento (Nota do Autor: um pouco menos de 40m) e éramos, dessa forma, obrigados a coabitar em ambientes lotados. Assim, as acomodações para nós, pobres soldados, eram pequenas e sujas. Meu primo, baixinho, por exemplo, cabia no catre, mas eu era obrigado a dormir todo encolhido.
O interior do navio cheirava a podridão, a alcatrão e, ainda mais, a odores humanos bem ruins e a cordas úmidas. Já me perguntaram, rindo, que cheiro tem uma corda úmida.
Não sei descrever, o cheiro de corda molhada. Mas depois dessa viagem nunca esquecerei. Afinal, estava utilizando enroladas para apoiar a cabeça na hora de dormir. Em razão do desconforto do interior do navio durante a travessia das regiões frias perto da Europa, eu, aliás, dormia pouco. Assim, estava sempre sonolento.
Mal alcançamos mares quentes, porém, fiz como a maioria dos marinheiros. Ou seja, passei a dormir ao ar livre, no chão do convés
Um pouco antes de fechar os olhos, nos demorávamos apreciando a lua ou mirávamos as estrelas, tentando reconhecer constelações. Enquanto isso nos deixávamos embalar pelo barulho das ondas batendo contra o casco do navio. Meu pensamento ia muito longe: Sevilha, meus pais, Teresa… Quantos meses se passariam antes que ela se casasse com outro? Comentei o assunto com Pablo.
– Teresa não é mulher de ficar esperando por homem – disse meu primo.
– Por amor de Deus, cale a boca!
A terra é plana?
Sozinho, pensei com meus botões. A decisão de partir significava, antes de mais nada, na renúncia a tudo o que deixara. Se um dia voltasse, seria o que Deus quisesse. Devaneava, olhando para aquele mar léguas e léguas à nossa frente, que eu não sabia onde terminava.
A terra era realmente redonda? Afinal, certos navegantes haviam comprovado isso. Se fosse verdade, não haveria o risco de nosso navio cair de repente no vazio. Graças a Deus!
(Nota do autor: ainda hoje encontramos “filósofos” que defendem que a terra é plana. Melhor não contrariar)
Assim, Pablo e eu nos perguntávamos o que nos aguardava no final de nossa viagem. Como seria esse lugar chamado Nombre de Dios? E, acima de tudo, lá chegando, o que faríamos? De que modo poderíamos nos engajar em uma expedição? Afinal, novas terras estavam sendo descobertas. Quem sabe cheias de cidades pavimentadas com blocos de ouro.
Durante a maior parte do tempo, a viagem era, porém, tediosa. Em suma, para qualquer lado que olhássemos, tínhamos à frente um horizonte infinito que causava aperto no coração.
Monstros marinhos
Além disso, para aumentar nossa insegurança, corriam entre os marinheiros histórias de monstros e serpentes marinhas. Nunca saberíamos, aliás, se eram verdadeiras. Pablo disse que um marinheiro afirmara ter visto algumas. Mais de uma vez, aliás. Só a cauda de uma serpente saindo das ondas.
– E o que ele fez? perguntei, meio caçoando, meio na dúvida se monstros marinhos existiriam de verdade.
Meu primo correu os olhos pela superfície marinha, como se procurasse alguma criatura terrível.
Ele gritou:
– Valha-me Santiago !
– E deu certo?
Ele coçou a cabeça:
– Parece que deu…
Valha-me Santiago
Fiquei cismado com essa história. Afinal, Pablo, sempre meio assustado, olhava para o mar o tempo todo, a ponto de me deixar nervoso. Um dia, estávamos sozinhos na popa, quando ele apontou para um rastro de espumas nas vagas e gritou:
– Veja aquilo!
Apertei os olhos. A muitas braças de distância, tive, com efeito, a impressão de ver algo reluzente na superfície do oceano. Permaneci imóvel, observando, enquanto escutava meu primo repetindo sem parar:
– Valha-me, Santiago! Valha-me, Santiago!
A coisa, o bicho, o monstro, fosse o que fosse, aproximava-se da caravela. Meu coração disparou. Foi quando algo saltou para fora d’água. Parecia um enorme peixe. Franzi a testa e então entendi: o que, de longe, parecia o dorso ondulado de uma serpente, era apenas um bando de golfinhos. Seguiam, assim, a embarcação, em fila, levantando esteiras brancas de espuma.
– São golfinhos! – disse Pablo, aliviado.
Dei risada:
– Era um monstro, sim, mas Santiago transformou-o em golfinhos.
Ele olhou-me com o rabo dos olhos:
– Olhe esse mar, esse azul que tem não sei quantas braças de profundidade. Sabe-se lá o que vive sob essas águas, primo. Sorte nossa não ter sido um monstro de verdade!
O medo às tempestades: o preço do ouro e da aventura
O mar, nos dias de sol, tinha tons de um azul intenso que não existe perto da costa. Quando o tempo virava, o que, aliás, podia acontecer subitamente, o mundo à nossa volta tornava-se cinzento. Tínhamos pavor das tempestades. Assim, qualquer nuvem no horizonte já nos deixava apreensivos. Esse temor tinha, entretanto, razão de ser. Afinal, nossa caravela viajava sozinha. Em caso de naufrágio, morrer no mar era quase uma certeza, pois não haveria outros navios que recolhessem os sobreviventes agarrados a um mastro ou a bordo de um bote. Parte dos homens, aliás, não sabia nadar. Em suma, se alguém caísse na água arrastado por uma onda, não teria chance de salvação.
Quando a tempestade piorava, alguns ajoelhavam e rezavam, clamando por Jesus e por Nossa Senhora. Eu escutava a mesma ladainha: Não nos deixai morrer! Era horrível. O que pensa um homem que acredita que vai morrer? Muitos navios afundavam ao atravessar o oceano. Um velho marinheiro afirmava que uma em cada dez embarcações ia para o fundo do mar.
Não sabíamos, entretanto, se era verdade ou exagero. Apenas rezávamos para que nossoo galeão não fosse uma deles.
Felicidade: avistar terras firme
Em certos dias o mar ficava simplesmente encapelado. Muitos de nós enjoávamos com mais facilidade com o balanço da nau, que subia e descia. Nesse aspecto era pior do que durante as tempestades, quando o pavor impedia a náusea. Em outras palavras, a verdadeira felicidade era avistar terra. Em suma, um lugar onde poderíamos nos reabastecer, beber água fresca e comer frutas. Não havia, porém, muita terra entre a Europa e as colônias. Assim, os períodos em alto mar pareciam intermináveis. Em geral os barcos partiam de Sevilha e seguiam para as Canárias, onde a tripulação descansava durante alguns dias. Depois seguíamos viagem. O próximo porto seria somente em Hispaniola (Nota do Autor: Ilha de São Domingos, no Caribe, hoje ocupada pela República Dominicana e pelo Haiti.), já no distante Caribe.
Piratas do Caribe
Os piratas eram uma praga, sobretudo no Caribe, por onde passavam, rumo a Espanha, os navios carregados de metais preciosos que voltavam do México. Roubavam, portanto, as mercadorias e até a própria nau, se fosse de boa qualidade. Nossa caravela, porém, possuía canhões para defesa e, como éramos muitos soldados a bordo, estaríamos, portanto a salvo. E, aliás, as naves chegando da Espanha, porôes vazios, não despertavam interesse.
Porém, os navios mercantes, carregados de ouro, só tinham relativa segurança quando a travessia era acompanhada por uma esquadra armada. Embarcações solitárias eram, às vezes, atacadas; sua carga, roubada; e os homens, assassinados. Se houvesse mulheres a bordo, seu destino era sabido. Maltratadas e, ainda mais, contaminadas por sífilis e outras doenças do sexo, muitas acabavam morrendo.
O que pensavam os ladrões do mar
Por uns poucos piratas e corsários capturados pelos espanhóis, sabíamos o que os ladrões do mar pensavam. Aliás, um frade dominicano que estava a bordo nos contou a história de um pirata arrogante, que fora enforcado. O malfeitor dizia que o ouro obtido pelos espanhóis no México também era roubado. Vocês roubam dos índios, nós roubamos de vocês. Ou seja, o miserável não via diferença entre nós e eles. Não queria reconhecer que a conquista das terras que nós e os portugueses estávamos descobrindo fora autorizada pelo Papa. Tínhamos o direito de desfrutar suas riquezas. Assim também, levávamos a palavra de Deus a pagãos.
Ouro e aventrura: de um oceano para outro
Passamos um tempo em Nombre de Dios, andando perto do mar ou bebendo numa bodega sem ter muito o que fazer. Assim, foi até que vieram nos convocar.Tivemos, portanto, para chegar ao Mar do Sul, que atravessar as doze léguas do istmo do Panamá, que separa os dois oceanos. A viagem levou apenas três dias, porém, foi penosa por causa do caminho barrento. Assim, carroças e carros de boi atolavam todo o tempo. Enfim, essa trilha era mais apropriada as mulas e cavalos.
O pior, ainda mais, eram os mosquitos que não nos deixavam em paz e o intenso calor. Não existia, porém, outro modo de passar de um oceano ao outro. Aliás, tudo chegava da Europa pelo lado Atlântico. Posteriormente, porém, parte das mercadorias seguiam em lombo de burro até o Mar do Sul. Como seria bom se um rio ou canal ligasse os dois mares!
Siga o relato
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação deste relato: A chegada ao Panamá
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Temos, igualmente, neste blog o livro A vaca na estrada, fartamente ilustrado. É o relato de uma viagem sabática, de carro de “Paris a Katmandu” com um amigo francês. Uma longa aventura por desertos e montanhas na Turquia, Irã, Afeganistão (antes do Talibã), Paquistão, Índia e Nepal.