Atahualpa ingressou na praça com os principais curacas, seguido também pelos músicos e dançarinos. A praça foi, dessa forma, sendo toda ocupada, com Atahualpa no centro. Surpreso, porém, por não ver nenhum espanhol, ele ficou em pé na liteira. Eu, entretanto, conseguia enxergá-lo de onde estava: notava-se que estava irritado. Foi quando frei Valverde, seguido de Felipillo, saiu de um galpão, a Bíblia em uma das mãos e uma cruz na outra, e caminhou assim em direção ao Inca.
Atahualpa irritado
O silêncio tomou dessa forma conta da praça. Atahualpa, após um momento de estupefação, sentou-se na liteira para escutar o que aquele barbudo teria a lhe dizer. Frei Valverde falou de Deus, da Virgem Maria, de Jesus Cristo e de nossa fé desde o princípio dos tempos. Atahualpa o olhava, porém, muito sério, intrigado, em silêncio. O religioso falou assim sobre a Espanha e sobre nosso imperador. Logo falou também de Pizarro, que tinha vindo em nome de Sua Majestade receber, como um irmão, a vassalagem dos povos do Peru. Concluiu, portanto, pedindo ao Inca que aceitasse a autoridade de Carlos V e se tornasse cristão. Creio, porém, que Atahualpa simplesmente não entendeu nada do que lhe foi dito. Ou seja, não conseguiu acreditar que aquela meia dúzia de viracochas tivesse, ainda mais, a ousadia de formular tal proposta. Irritou-se, portanto, com o religioso.
A Bíblia
O Inca Interrompeu frei Valverde. Assim, perguntou no que ele se apoiava para fazer aquelas afirmações. O padre, então, lhe mostrou a Bíblia. Escondido, acompanhei a cena. Por sua expressão, percebi que Atahualpa continuava, porém, sem entender o que era aquele estranho objeto. Logo Felipillo explicou que era uma espécie de quipú dos cristãos. Quando frei Valverde se aproximou dele com o livro, o Inca, porém, o afastou bruscamente, desconfiado de uma armadilha. Tomou o livro santo das mãos do padre, mas não conseguiu abri-lo, pois tentou fazê-lo pela lombada. Quando o abriu, examinou com pouco caso suas páginas.
Não deu importância, aliás, às santas palavras que ele continha e o jogou no chão.
– É um sacrilégio! – gritou frei Valverde.
O Inca levantou-se e, irado, perguntou-lhe se Pizarro iria lhe devolver tudo o que fora saqueado de seu reino desde nosso desembarque em San Mateo. O frei se assustou e correu para o galpão onde Pizarro se escondia.
– Algo tem que ser feito. O índio virou uma fera! Atirou a Bíblia Sagrada ao chão!.
Santiago!
Não era mais possível esperar. Dessa forma, saindo na praça, Pizarro gritou a todo pulmão:
– Santiago!
Um dos nossos tocou uma trombeta. Assim, da fortaleza, Pedro de Candía, alertado, disparou a primeira salva, atingindo a extremidade da praça junto à rua por onde chegara a comitiva real. Os índios se apavoraram com aquilo. Nesse momento os cavaleiros atacaram. Imediatamente, os homens de Hernando de Soto, de um lado, e nós, de outro, investimos sobre os índios.
Guerreiros desarmados
Atahualpa estava, em suma, tão seguro de si que trouxera guerreiros desarmados! De qualquer modo, mesmo se alguém tivesse lanças ou fundas, não teria, portanto, tempo nem espaço para utilizá-las. Para nós, montados, foi fácil, porém, manejar os sabres e lanças. Demos assim início a um massacre, enquanto os animais pisoteavam os indígenas apavorados.
Os que puderam, debandaram, e Atahualpa, que se levantara em sua liteira, nada pôde fazer para contê-los. Os cavaleiros desferiam golpes de sabre, fazendo rolar cabeças, partindo índios ao meio e atropelando os inimigos com surpreendente facilidade.
Atahualpa na liteira
Logo duas explosões atingiram novamente a entrada da praça. Era Pedro de Candía que disparava da fortaleza. O pânico foi geral. Os que se apinharam em um dos cantos da praça foram mortos a golpes de lança e de sabre. Corpos caíam sobre corpos, o chão tornou-se assim vermelho de sangue. A pressão contra o muro feito de pesadas pedras empilhadas foi tanta que, em dado momento, ele cedeu. Dessa forma, pela fenda, algumas dezenas de nativos conseguiram, portanto, escapar, feridos e ensanguentados.
Aproveitando o tumulto, o jovem Juan Pizarro atacou a guarda pessoal de Atahualpa com seus soldados e, unindo-se ao Gobernador, abriu caminho até o Inca. Este continuava em pé na liteira sustentada pelos quatro carregadores, que permaneciam imóveis como pedras, aguardando uma palavra de seu amo, com um estoicismo, aliás, inacreditável. Um deles, aliás, tivera a mão decepada, mas, mesmo esvaindo-se em sangue, mantinha-se em pé, impassível, com a liteira sobre o ombro.
Ccapturando o Inca
Vi quando Pizarro e outros foram se aproximando do Inca cuja guarda pessoal ia sendo dizimada. Dei uma esporada em meu cavalo e fui ajudá-los. Era, portanto, quase como matar moscas. A única dificuldade, porém, foi alcançar Atahualpa sobre a liteira, já que os carregadores cumpriam estritamente sua função. Não podiam, portanto, defender o soberano, mas também não cediam, e os que caíam ensanguentados eram logo substituídos por outros, até que a liteira, inclinada de um dos lados, ficou apoiada sobre os últimos corpos a tombar. Finalmente, conseguimos apanhar Atahualpa, enquanto Pizarro gritava que não o matassem, já que o galego mirrado tentara atingir o Inca com sua espada.
Ouvi o grito do Gobernador, que, ao desviar o golpe do soldado, feriu a mão:
– Não, imbecil! Não! – Gritou e, em seguida, virou-se para os demais: – Quem o matar será enforcado!
Atahualpa capturado
Gonzalo Pizarro foi o homem que agarrou o Inca, primeiro pelos cabelos. A um sinal do Gobernador, segurou-o pelo braço, enquanto eu e outros cavaleiros lhe dávamos cobertura. A guarda pessoal de Atahualpa fora dessa forma aniquilada e os raros sobreviventes fugiram. O maior perigo, porém, eram os nossos próprios cavalos, nervosos com a confusão. Só faltava um deles matar o Inca com um coice! Por isso mesmo, mais do que depressa Pizarro e Gonzalo conduziram Atahualpa para o Templo da Serpente, afastando-o, assim, da balbúrdia que tomara conta da praça.
O massacre
Com o Inca preso, Soto e Hernando passaram a perseguir os curacas aliados de Atahualpa e a matar os poucos guerreiros que, na praça, tentavam resistir. Vendo que Atahualpa já estava preso, juntei- me aos dois capitães e seus cavaleiros. Estocava os índios com meu sabre, enquanto meu primo fazia a mesma coisa com uma lança. A debandada era geral: bastava avançar e atacá-los. Hernando atacava gritando:
– Furem esses cães!
Golpeou tantos e em tantas direções que acabou, finalmente, caindo de sua montaria quando o animal tropeçou num corpo. Desmaiou e só foi acordar mais de uma hora mais tarde, quando a batalha na praça já terminara. Enquanto isso, Soto se divertia, agora fora da cidade, perseguindo os índios em fuga sob a garoa fina que começava a cair.
Quando se recuperou, Pizarro mandou-o buscar Soto, com ordens de regressar ao acampamento. Fui com ele. Soto e seu pelotão, embriagados pelo sangue, recusaram-se, porém, a obedecer às ordens do Gobernador. Ou seja, era preciso aproveitar a oportunidade,
– Não se deixa um inimigo em fuga escapar!
Quando se começa a matar…
Eu, entretanto, o entendi muito bem. Quando se começa a matar, é difícil parar. Tinha medo de mim mesmo. Em suma, não gostava da febre que tomava conta de meu coração nesses momentos. Mas não conseguia, porém, me conter. O que sei é que, quando investimos sobre os índios na praça, nosso furor assim foi uma forma de vingança pela tensão e pelo medo atroz sofrido enquanto esperávamos por Atahualpa. Eu atacava aqueles selvagens com ódio. Afinal, sabia que não se faz guerra sem ira. Também serviu de incentivo ter visto Atahualpa desprezar a palavra de Deus. Uma afronta como aquela precisava, portanto, ser vingada. Eu tinha pensado muito em como reagiria quando chegasse a hora, se teria medo. A coragem, entretanto, me veio naturalmente, como fruto da raiva que senti daqueles índios.
Hernando deu de ombros diante da desobediência de Soto e voltamos para Cajamarca. Havia, porém, tantos corpos espalhados pelo caminho que era preciso desviar para não tropeçar. Não perdemos um só homem. Matamos, entretanto alguns milhares. Nessa escaramuça, que demorou menos de uma hora, foi dessa forma decidido o destino do império do Peru. O tudo ou nada de Pizarro dera portanto certo. Ou seja, estava aberto o caminho para riquezas inimagináveis. Passada a loucura da batalha, quando vi a quantidade de corpos espalhados pelo chão, não me senti bem. Eu já matara muitos índios antes e não me incomodara. Abatia-os, sem pensar se estavam mortos ou não, e ia embora.
A benção da igreja
Nunca, entretanto, me vira cercado de tantos cadáveres. Conversei a respeito com um dos frades. Ele me abençoou e me tranquilizou:
– Eu compreendo, filho. Você se sente assim porque é um cristão. Cristãos não são como mouros, que gostam de matar. Mas saiba: o que vocês fizeram nesta tarde vai salvar milhares de almas que, de outro modo, arderiam para sempre no inferno. Vamos ensinar a esses infelizes o caminho da salvação.
Senti-me momentaneamente muito melhor. Assim, agradeci ao religioso e me afastei. Porém, enquanto andava de cabeça baixa para não tropeçar em tantos corpos, não pude entretanto, me impedir de pensar. Enfim, creio que pela primeira vez desde que chegara ao Peru, me perguntei se era necessária tanta mortandade para levar a palavra de Deus àquele povo. Nauseado, encostei-me a uma parede. Em suma, não queria mais ver aquela cena. Fechei os olhos, tentando fazer algo que eu sempre me impedira: pensar. Eu fora àquele país para salvar almas? Preocupara-me com isso? Em suma, partira da Espanha tão somente em busca de ouro, como todos os meus companheiros?
Um quadro pavoroso
Tinha diante de mim um quadro pavoroso. Olhei para um corpo semidegolado a meus pés, de olhos abertos, como se me fitassem de modo interrogativo, exigindo uma resposta. Quem seria aquele índio morto? Ou seja, teria mulher, filhos, pai, mãe? Não aguentei. Ergui, assim, os olhos para o céu porque, para qualquer outra direção que olhasse, só via cadáveres. Ou seja, deparava, assim, com pedaços de corpos, um braço, um pé cortado, uma cabeça separada do tronco, vísceras… Também me abalavam os gemidos e os gritos pavorosos dos feridos.
Um soldado aproximou-se, de espada na mão, acompanhado por dois escravos africanos com punhais. Era um velho veterano. Disse-me que qualquer campo de batalha após o fim dos combates é horrível de ver, mas aquela praça, porém, superava tudo o que tinha assistido em sua vida.
– Nem nas guerras contra os mouros vi algo igual.
Limpar o terreno
Soto chegara determinado a fazer o que ele chamava de “limpar o terreno”. Em suma, matar os moribundos, pondo fim aos urros de dor e às lamentações que abalavam os nervos dos soldados. Virou-se para um dos negros e apontou para um homem a três passos de nós, que não cessava de gritar.
– Aquele ali está vivo.
O escravo aproximou-se, ajoelhou-se e enterrou o punhal no coração do índio.
– Tem outro adiante…
Não suportei ver mais. Fui andando. Querer ter ouro e melhorar de vida não era pecado. Mas, para obtê-lo eu precisava ter tirado tantas vidas? E se toda essa gente que matei tivesse alma igual à dos cristãos? Não achei solução para minha indagação. Só consegui forças para sair dali, entrar em um dos galpões e rezar, pedindo ao Pai que me perdoasse se eu estivesse errado. Não tive coragem de falar sobre o que sentira com nenhum soldado, nem sequer com Ortiz, o único que talvez me compreendesse. Lembrei-me do que dissera o padre: eram os mouros que gostavam de matar. Mas, e cristãos como os irmãos de Pizarro ou como Soto? Matavam, assistiam à missa aos domingos e estava tudo bem. Acho que eu preferiria ser como eles, mas não conseguia.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
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