Escolhendo o caminho
Para prosseguir viagem até Kabul havia dois caminhos: o do norte e o do sul. O melhor, pelo sul, passava por Kandahar. A estrada, construída por russos e norte-americanos, atravessava um planalto acidentado, de vegetação rala, praticamente um deserto de areia e pedra. Na dúvida, conversamos com o afegão do hotel. Nos confirmou que a estrada do sul era de fato a mais indicada.
Abaixo: Mapa da região de Kandahar
Apesar de ser, afinal, a estrada principal, o movimento era pouco. Aliás, somente em alguns trechos, onde, por exemplo, havia água, víamos alguém. Era onde avistávamos nômades acampados. Às vezes o “acampamento” se limitava apenas a algumas cabanas. Não longe estavam seus camelos e rebanhos de carneiro. Vez ou outra parávamos para fotografar. Aliás, esses pastores de aparência bíblica, usando turbantes davam boas imagens. Sempre, porém, nos pediam cigarros. Eu não fumava. Bernard, porém, resmungava. Seus cigarrinhos franceses não iriam durar até Katmandu,
A máquina do tempo
A impressão que tínhamos era que tínhamos entrado em uma espécie de máquina do tempo. Talvez tenhamos voltado mil anos na História. Ou dois mil anos… como na época de Cristo.
Mais uma vez, o vento do deserto era tão forte que, segurava o carro. Ou seja, o motor começava a falhar ao enfrentar pequenas elevações. Não sabíamos se o automóvel estava pedindo uma regulagem. Ou, talvez, a gasolina do país fosse muito vagabunda.
Eram raros, aliás, os lugares onde podíamos abastecer. Isso nos obrigava, portanto, a ter um galão com combustível para uma emergência, o que me preocupava, por causa dos cigarros que Bernard acendia dentro do carro e que sempre me deixava apreensivo. Ele tinha medo que roubassem um galão deixado no bagageiro. Assim os conserva dentro do carro, o que me preocupava.
— Por amor de Allah, cara, apague isso!
Os campos afegãos
Na estrada, os escassos “postos” de gasolina tinham bombas acionadas manualmente. Afinal, não havia eletricidade. O movimento de veículos era, aliás, mínimo. Só ocasionalmente cruzávamos com algum velho caminhão Tata indiano. Pesadões, eles eram pintados de cores berrantes. Estavam sempre apinhado de gente, galinhas, cabras e mercadorias. Eram igualmente raros os ônibus e mesmo automóveis particulares.
O silêncio amarelado dos campos semi-desérticos
Quando parávamos de conversar, o único som que ouvíamos era do vento agitando a areia a alguns centímetros do solo. O silêncio era, portanto, quase absoluto. Quando se grita num lugar assim, o som parece explodir no ar. Depois evapora como água. Existia somente um nada amarelado e o azulão do céu. Se nos afastássemos alguns metros da estrada, era como se tivéssemos desembarcado em Marte.
O deserto, quase sem vida, mas belo
Só no final da tarde alguns relevos se destacavam, formando sombras e contornos bem marcados na paisagem. A sensação do deserto, do vazio, dos amplos horizontes sem vida é especial.
Andando por ali, caminha-se por um terreno sempre igual: pedra e areia. Se parássemos e olhássemos para qualquer lado, abstraindo-se o asfalto e o carro, a paisagem seria idêntica.
Ou seja, não havia direção a seguir. Assim, se me afastasse, se desse a volta em uma das elevações, se ficasse sozinho, seria o último ser vivo de um planeta morto. A grande diferença nessa paisagem era marcada pela áreas montanhosas com seus cumes cobertos de neve. Como estávamos, afinal do verão, a neve só existia ao longe, nos picos mais elevados.
As poucas cores do deserto
Em uma das paradas para comer, vimos algo diferente: estranhas manchas roxas numa encosta. Foi por isso, aliás, que paramos ali. Fomos espiar de perto aquele fenômeno de cores inesperadas na paisagem. Assim, descobrimos que eram flores secas, de uma espécie que nunca víramos antes. Como puderam nascer nesse lugar árido era para nós um mistério. O deserto tinha, afinal, alguma vida.
Kandahar
Enfrentamos dois dias de estrada até Kandahar. Ficamos naquela ocasião em um hotel agradável. Nossos quartos davam para um magnífico jardim cheio de árvores e flores. Em frente ao hotel havia um segundo jardim, com mesinhas entre os pés de romã e figueiras. Desse modo, um odor de flores e frutas perfumava o ar. O clima era, igualmente muito agradável, seco, com temperaturas amenas e o céu sempre muito azul.
Diminuir o ritmo para curtir mais
Até então, para meu gosto, corrêramos muito. Bernard tinha a pressa de um caminhoneiro. Na Turquia isso me incomodara um pouco, mas não foi um problema porque eu já visitara o país duas outras vezes quando morava em Paris. O Irã foi menos interessante e não liguei tampouco que ficássemos por lá apenas uns dez dias. No Afeganistão, porém, tive a sensação de ter finalmente chegado ao Oriente que eu procurava. Queria desfrutá-lo.
Diminuindo o ritmo
Assim um dia eu disse a Bernard:
— Que tal menos pressa e curtir mais? Nós temos tempo.
Coçou a cabeça:
— É que Katmandu nos espera…
Depois de um papo frente a uma xícara de chá consegui convencê-lo, finalmente, que era a viagem toda que nos esperava…
Podíamos jantar no jardim do hotel. Aliás, a cozinha, era excelente e incluía pratos afegãos e ocidentais. Com US$ 1 obtínhamos 25 afeganis, a moeda local. Ou seja, o preço da diária para cada um de nós! Um dos pratos mais comuns era arroz com legumes e carneiro, que comíamos frequentemente.
O paraíso por preço de liquidação.
Ao anoitecer fomos dar uma volta no mercado local. Ficava a somente umas duas quadras de nosso hotel, bastante central. Adorávamos, aliás, os mercados asiáticos, suas cores e cheiros de temperos, frutas e incensos. Ou seja, uma bagunça de gente, bicicletas, charretes e lambretas. Sem falar de camelos e burricos carregados de mercadorias de todo tipo.
O point do povo local
Caminhando entre o povo escutávamos o vozerio dos mercadores, as barganhas. O mercado é uma instituição no Oriente. Sua uma importância é, aliás, incompreensível para o ocidental. Ou seja, não é apenas um local para se fazer compras. É onde se fica sabendo das notícias. Igualmente, onde vizinhos e amigos se encontram. É, portanto, um point do povo local.
Frutas
Ficamos também curiosos ao deparar com boa quantidade de frutas. Vimos diversas bancas bem abastecidas. Eram melões perfumados, melancias, figos e maçãs. Não vi, entretanto, em lugar algum uma única plantação do quer que fosse. Onde as cultivavam assim tantas frutas em um país de desertos? Mas, sei lá como, conseguiam fazê-lo. E, ainda mais, produziam frutas de qualidade, doces.
Nós e os afegãos
Em nosso hotel havia apenas estrangeiros, entre eles mulheres sozinhas; europeias, principalmente. Claro, rolavam paquera, romance e sexo. Mas somente entre os estrangeiros. Os afegãos, não se importavam com as ligações entre os turistas. E nem tentavam muito entender! Assim, nunca vi uma só europeia com namorado afegão. O machismo é bravo no país. Assim, mesmo as turistas mais liberais temiam, conhecer mais de perto os homens da terra. Nós estrangeiros, éramos, portanto, apenas gente com quem os afegãos faziam negócios. Em outras palavras, tínhamos, para eles, uma moralidade esquisita.
O homossexualismo probibido, mas tolerado
Aliás, para ser honesto, a deles também nos parecia estranha, pelo jeito como tratavam as mulheres. Afinal, ali, sem casar, ninguém transava. Desse modo, um discreto homossexualismo era parte da cultura afegã. Ou seja, mesmo que condenado no ultra conservador mundo muçulmano soubemos que era comum. Allah condena por exemplo a sodomia. Mas, é prática comum por lá. Bernard e eu éramos tipos latinos peludos e barbudos. Dessa forma, raramente nos abordavam. Mas, os jovenzinhos nórdicos ou alemães, loirinhos, imberbes, talvez mais tímidos, faziam inegável sucesso. Assim, procurávamos ficar entre nós, ocidentais de diversos países. À noite nos reuníamos em torno de uma fogueira no páteo, tomando chá. Boa ocasião, portanto, para cada um contar suas aventuras da Europa ao Afeganistão.
Os mandamentos de Allah
O café da manhã servido em nosso hotelzinho era bastante bom. Destinava-se aliás, a agradar ao paladar ocidental. Podia-se assim, comer em Kandahar, como no Brasil, em qualquer cidade europeia ou norte-americana, ovos, queijo, manteiga, geléia de diversos tipos. Apenas o bacon não fazia parte do cardápio, para desgosto dos americanos.
A impura carne de porco
A carne de porco, impura, não consta dos menus autorizados por Allah. De fato, carne de porco mal cozida, às vezes de animais doentes, é um perigo em qualquer tempo e lugar. Ao que parece, os povos da Ásia Menor descobriram isso há milênios. Ou seja, essa é a origem da interdição surgida no Oriente Médio. Lembrando, aliás, que judeus também não consomem carne suína.
Sigam o relato:
Sigam esta aventura de carro pelas estradas da Ási. Atravessando o Oriente mágico e éxotico que encantou milhares de jovens europeus. Uma experiência vivida pelo autor do livro “A Vaca na Estrada” por países como Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia, Nepal
Veja a continuação desta postagem: A estrada para Kabul