Levantes incas contra os espanhois em todo o Império
Os levantes incas em Cusco e Lima assustaram o espanhois. Ou seja, fora muito mais sério do que imaginávamos. Lima, aliás, também sofrera pesados ataques. Assim, em toda a colônia, pelo menos mil espanhóis teriam morrido. Aliás, por pouco não fomos expulsos do Peru. Só quando o cerco de Cusco foi levantado soubemos que Pizarro, fora informado da insurreição na antiga capital inca. Assim, enviara quatro expedições para nos ajudar. As três primeiras, fracassaram. Ou seja, foram sucessivamente emboscadas em desfiladeiros e massacradas até o último homem. Logo, quando deparávamos com uma dessas gargantas apertadas entre dois paredões rochosos, já estremecíamos.
A tática usada foi a de mandar camponeses da região provocar desmoronamentos de pedra sobre os soldados e cavalos. Isso acontecia durante a travessia de certas gargantas nas montanhas. Afinal, mesmo que boa parte dos homens escapasse viva, os soldados estavam bloqueados. Sem condições, portanto, de movimentar seus cavalos em meio a pedaços de rocha. Assim, encurralados acabavam por se tornar alvos fáceis das flechas e das pedras certeiras atiradas pelos fundeiros.
Os incas aprendem novas estratégias
Como já observara Hernando, os índios estavam, portanto, aprendendo. A grande falha do Gobernador foi, sem ter notícias da primeira expedição, enviar logo uma segunda, uma terceira e uma quarta. Ou seja, só nesta última alguns homens sobreviveram. Dessa forma puderam relatar como e onde foram emboscados e, também, o que houve com as demais. Chego a estremecer quando penso nisso. Quatro expedições aniquiladas! Se os índios tivessem essa experiência antes, teriam certamente acabado conosco quando subimos a serra rumo a Cajamarca pela primeira vez, ao atravessar desfiladeiros.
Ataque a Lima
Ignorávamos, por exemplo, que Lima, atacada por multidões de guerreiros vindos das serras, fora invadida. Assim, ocorreram combates dentro da cidade. A capital só escapou porque Quizo Yupanqui, o principal curaca e comandante das tribos, arriscou um ataque frontal irresponsável e foi morto. Em suma, embalado pelos sucessos nas serras não pensou que Lima é uma cidade plana. Dessa forma, perfeita para o uso da cavalaria.
Os nativos se dispersam
Assim, derrotados nesse embate e sem um chefe capaz de comandá-los, os nativos acabaram se dispersando e voltando para suas aldeias. Felizmente, portanto, para os espanhóis, os índios, acostumados a serem comandados, tornavam-se sem iniciativa quando perdiam seus líderes. Também contribuiu para a vitória espanhola a ajuda das tribos litorâneas. Eram povos inimigos dos quéchuas, que atenderam ao pedido de socorro de Pizarro. Desse modo, enviaram guerreiros para ajudar nossas tropas contra Quizo. Porém, da mesma forma que os incas, tinham também medo dos cavalos. As vezes, portanto, nos atrapalhavam. Enfim, sua contribuição mais importante foi nos fornecer alimentos e outros bens.
A quinta expedição
Somente depois do fim do cerco à cidade e da morte de Quizo Yupanqui uma quinta expedição sob o comando de Alonso de Alvarado partiu para a serra. Alonso conseguiu vencer os quéchuas nas proximidades de Jauja. Essa expedição, aliás, só teve sucesso por ter encontrado, por acaso, os raros sobreviventes da anterior que, assustados, tentavam voltar a Lima. Informados, portanto, das táticas que os quéchuas estavam utilizando, eles conseguiram escapar das armadilhas que os esperavam nos desfiladeiros. Os quéchuas, derrotados, foram castigados com crueldade. Assim, os homens de Alonso de Alvarado, ao tomarem suas aldeias, amputavam os braços dos homens e os pés das mulheres, tática que ele já utilizara contra os índios no Caribe.
Após derrotar os índios, Alonso montou acampamento junto ao rio Abancay para que seus soldados, exaustos, pudessem finalmente descansar.
Almagro volta do Chile…
Preocupado, porém, com a possibilidade de um novo ataque dos nativos, não passou pela cabeça de Alonso ser surpreendido por tropas espanholas inimigas. Ou seja, o Almagro fora mal-sucedido no Chile e estava de volta. O Adelantado, além de não encontrar ouro, perdeu igualmente muitos homens. A maioria morreu de frio na cordilheira coberta de neve. Ainda mais, Almagro ao regressar, para evitar a cordilheira gelada, resolveu pegar pelo deserto do Atacama, bem próximo do litoral. Em suma, um erro que lhe custou caro.
Uma péssima decisão. Ou seja, vários de seus soldados pereceram de sede. Os rumores sobre a existência, no Chile, de cidades ricas como Cusco, eram portanto falsos. Frustrado, furioso com Pizarro, e também pressionado por seus soldados, Almagro decidiu garantir para si a antiga capital inca, reivindicando-a como parte de seu território de Nova Toledo.
Almagro toma Cusco
Assim, Almagro, de volta ao Peru, conseguiu em 8 de abril de 1537 tomar Cusco das mãos de Hernando Pizarro. Deu sorte.Afinal, as tropas de Hernando já estavam muito enfraquecidas em razão das perdas sofridas durante o levante inca. Assim, Cusco foi mais uma vez saqueada, dessa vez pelos homens levados ao Peru por Pedro de Alvarado, que participaram da expedição chilena de Almagro. Os “do Chile”, frustrados pelo fracasso de sua missão, procuravam pelo nosso ouro e atacavam as propriedades dos encomienderos. Em suma, roubavam seus bens e violentavam as índias dos soldados de Pizarro. Também incendiaram muitas casas ocupadas por nós, agindo como se fôssemos inimigos.
Almagro se vinga
Após tomar Cusco, Almagro mandou prender Hernando e Gonzalo. Ortiz, eu e, igualmente, outros soldados não sabíamos mais de que lado lutar. Sem participar dos combates, mas bem armados, conseguimos apenas evitar que nossas casas fossem invadidas, nosso ouro fosse saqueado e nossas mulheres sofressem abusos. Como Almagro apoderou-se, inclusive, da concubina de Pizarro, logo seus soldados devem ter pensado que poderiam fazer o mesmo com as de seus companheiros. Ainda mais, transformaram a já decadente casa das Virgens do Sol num prostíbulo.
Nossa sorte de tradutores
Por sorte, nós, tradutores, indispensáveis em muitas situações, éramos assim cada vez menos requisitados nos combates, desde que a quantidade de espanhóis aumentara.
Ortiz e eu havíamos, aliás, lutado em incontáveis batalhas contra os índios. Com exceção da perigosa pedrada que levei, só sofremos, entretanto, arranhões, enquanto víamos outros espanhóis morrerem ou ficarem aleijados. Eu lhe dizia que a Virgem nos protegia. Ortiz, porém, atribuía nossa sorte ao acaso. Enfim, hoje, acho que concordo com ele. Mas, naquele momento, não importava, estávamos contentes por não sermos chamados a combater, principalmente nas batalhas entre espanhóis. Aliás, foi sem saber o que pensar, que assistimos aos soldados de Almagro partirem ao encontro de Alonso de Alvarado para obrigá-lo a se render.
O comandante pizarrista Alonso de Alvarado é preso
Só posteriormente, por relatos de companheiros, soube como as coisas tinham se passado. No anoitecer de 12 de julho, quando acendiam suas fogueiras, soldados pizarristas de Alonso de Alvarado foram assim surpreendidos por Almagro. Ao ver espanhóis a cavalo aproximando-se do acampamento, nem passou pela cabeça de Alonso que pudessem ser as tropas do Adelantado. Afinal, ele supunha que estivessem ainda no Chile. Em suma, cercado, rendeu-se, portanto, quase sem resistir. Dessa forma, foi levado acorrentado a Cusco e jogado numa prisão.
Almagro tenta acordo com Pizarro
Pizarro estava percorrendo o Vale de Huarco, onde tentava pacificar tribos locais, quando soube que Almagro entrara em Cusco. E, ainda mais, que aprisionara seus irmãos. O Gobernador ficou, portanto, muito abatido e furioso, sentindo-se traído por seu sócio. Achava que, se Cusco ficasse de fato dentro do território de Almagro, que este, em primeiro lugar, viesse lhe apresentar seus argumentos,. Em suma, que não agisse como se ele, amigo e sócio há tanto tempo, fosse seu adversário.
Tentando evitar uma guerra entre os espanhois
Na tentativa de evitar uma guerra que só enfraqueceria os espanhóis diante dos índios, Pizarro tentou negociar mais uma vez. Assim, escolheu a dedo uma comissão de embaixadores respeitados por ambas as partes para ir a Cusco conversar com Almagro. Cauteloso como sempre, enviou uma carta conciliadora a Almagro, pedindo-lhe que considerasse os limites territoriais estabelecidos nas cédulas reais e libertasse os presos. Como portador, enviou Nicolás de Ribera, que mantinha boas relações com Almagro.
Um acordo difícil
Quando soubemos que o emisário de Pizarro tinha chegado a Cusco, ficamos na expectativa. Mas, a carta de Francisco Pizarro não convenceu, porém, o rival. Almagro estava doente, aliás, e igualmente muito influenciado por seus homens, ressentidos do fracasso da expedição ao Chile. Enfim, devia, talvez, estar consciente, que Francisco Pizarro lhe passara a perna. Ou seja, o Gobernador devia saber que não havia ouro algum no Chile. Só índios particularmente bravios. Tribos, aliás, que nem mesmo os incas conseguiram conquistar.Tentaram, porém, mas nunca conseguiram.
A “outra Cusco” que nunca existiu
Eu ouvira um de seus capitães afirmar que Pizarro devia saber que não havia “outra Cusco” mais ao sul. Em suma, comentava-se que enviara Almagro e seus homens para morrer de frio na cordilheira. Assim, quando comentei o assunto com Ortiz, este sorriu:
– Não sei se Pizarro sabia que não existiam riquezas mais ao sul, mas, realmente, enviar Almagro ao Chile foi uma forma de se ver livre dele e de seus homens.
Apesar de tentar negociar, Francisco Pizarro despachou, porém, mensageiros para Lima com pedidos de reforços para suas tropas.
Arbitagem
O Adelantado aceitou submeter a questão à arbitragem do Bispo do Panamá, frei Tomás de Berlanga, que estava no Peru. Os negociadores de Francisco pediram então a Almagro licença para discutir a proposta com Hernando, que continuava, aliás, prisioneiro no templo de Coricancha. Impaciente para ver-se livre, Hernando disse aceitar o que Almagro quisesse. Este, ainda insatisfeito, exigiu mais territórios, com o que Hernando igualmente concordou. Logo toda a cidade comentava as negociações.
Encontrei-me, na praça, com Ortiz e José, que agora se vestia com roupas espanholas e também falava cada vez melhor a nossa língua. Assim, conversamos sobre o que Hernando poderia ter em mente. Ortiz tinha, aliás, opinião formada sobre o assunto:
– Ele deve estar oferecendo até a própria mãe em troca de sua liberdade. Ou seja, deve estar pensando: deem tudo o que esse filho da puta quer, mas façam com que me solte daqui. Livre, eu acabo com a raça desse cão!
Executar Hernando?
Talvez por saber disso, Rodrigo Orgónez, um dos capitães de Almagro, propôs que Hernando fosse executado. O Adelantado, porém, não concordou. Afinal, o irmão de Francisco Pizarro seria mais útil como refém. Eu tinha igualmente essa opinião. Certamente que Hernando Pizarro, se libertado, nunca iria cumprir promessa alguma. Aliás, ninguém entre a liderança dos conquistadores cumpria promessas. Não apenas às feitas aos índios. Não respeitavam, igualmente nada do que tratavam entre eles. O mais provável, portanto, é que, Hernando se tivesse oportunidade matasse Almagro.
Almagro segue para o litoral
Além disso, Hernando chegara igualmente com a incumbência de buscar mais ouro para a Coroa espanhola. Almagro sabia, portanto, que executá-lo teria, suas consequências.
Em suma, Almagro tinha outros planos. Para consolidar seu território, pretendia criar um porto que lhe permitisse se comunicar diretamente com a Corte. Em outras palavras, sem passar por Lima, nas mãos de Pizarro. Ou seja, ter o seu porto. Para isso partiu para o litoral tomando uma estrada inca que ligava Cusco à costa.
Gonzalo e Alonso de Alvarado escapam da prisão em Cusco
Almagro deixou Gonzalo Pizarro e Alonso de Alvarado presos em Cusco, mas levou consigo Hernando como prisioneiro. Partiu assim para o litoral, onde fundou um vilarejo, a Villa de Almagro.
Sua alegria, entretanto, durou pouco. Ou seja, estava ainda comemorando a fundação do povoado quando recebeu um mensageiro de Cusco que lhe comunicou a fuga de Gonzalo e Alonso de Alvarado. Ficou furioso. Eu, que estava em Cusco quando isso ocorreu, sabia que os dois prisioneiros subornaram os guardas. Ou seja, já desconfiava que seus carcereiros, “do Chile”, sedentos por ouro, os soltariam por umas poucas moedas. Enfim, Almagro fora ingênuo.
Partir de Cusco
Tanto Ortiz como eu não queríamos, porém, continuar em Cusco. Os “do Chile” estavam se tornando cada vez mais perigosos e logo a tensão aumentou entre os espanhóis. Sabendo que poderíamos ser roubados ou assassinados, resolvemos, portanto, seguir para Lima. Com as índias e as crianças deixamos a cidade à noite, discretamente. Dessa forma, carregamos meia dúzia de lhamas para transportar nosso ouro escondido entre mantimentos. Levamos conosco, José, dois índios, além dos cavalos e igualmente duas mulas.
A volta a Jauja
Apesar de não gostarmos de Hernando e, principalmente, de Gonzalo, optamos, entretanto, por ficar do lado do Gobernador que, de todos, era o mais sensato. Jauja foi a primeira etapa de uma longa viagem até Lima. Como viajávamos com mulheres e crianças, evitávamos assim percorrer muitas léguas por dia. Nos instalamos, portanto, durante dois dias em uma cabana que nos cederam para assim poder descansar um pouco.
Era estranho como a vida da aldeia de Jauja já havia mudado. Notamos igualmente, que os espanhóis começavam a se tornar parecidos com os índios nos costumes e na alimentação. Alguns falavam um pouco de quéchua e até participavam de festas nativas. E, enquanto os índios começavam a usar trajes europeus e chapéus, os espanhóis adotavam os quentes e sedosos ponchos de alpaca. Sem saber estavam, dessa forma, nessa fusão de costumes, começando a criar um novo país.
Vales e encostas
Dias depois prosseguimos viagem com nossa pequena tropa. Atravessamos vales, subimos encostas e cruzamos rios. Após uma hora de marcha, Ortiz comentou:
– Lembro-me de quando viajei com meu pai pela Europa. Ao que parece, cada país tem suas cores e seus odores. Florestas, campos e bosques parecem ter perfumes diferentes em cada lugar. Aqui também. É o cheiro de certas plantas, da relva úmida, talvez de suas lhamas. Coisas que certamente nunca esquecerei.
Respirei fundo o ar da manhã:
–Talvez você tenha razão. Nossa Andaluzia parece cheirar a poeira e mato seco. Aqui a umidade deixa tudo diferente. Ortiz coçou a barba:
– Não é só isso. Essa cordilheira imponente, por exemplo, é única, completou apontando as montanhas nevadas onde uma lhama pastava.
– Também não veríamos esses bichos na Espanha. A presença deles já torna esta paisagem muito especial.
Caçar nosso almoço
Por acaso, não tínhamos comido nada. Eu estava com fome.
– Acho que vou sentir falta desse tipo de carne quando voltar para a Andaluzia.
– Também estou com fome – disse Ortiz passando a mão pela barriga. – Creio que quando voltarmos à Espanha vamos sentir falta igualmente do chá de coca, da chicha e de outras coisas desta terra. No começo, enfim, nos sentiremos estrangeiros em nosso próprio país. É como acontece com tanta gente que se ausenta durante muitos anos de sua terra.
Olhei novamente para a lhama ao longe.
– Vamos caçar nosso almoço?
Ortiz sorriu, esporou seu cavalo
– Vamos!
A ponte perigosa
Muitas pontes tinham sido queimadas. Outras eram mal conservadas e, portanto, perigosas. Ou seja, concebidas para a travessia de pessoas e lhamas, e não de mulas carregadas. As mais longas eram presas às margens por cordas e tinham seu centro mais baixo do que as margens, com uma inclinação acentuada e piso escorregadio. Numa delas, bem danificada, me preocupou. Adverti, portanto, Ortiz para não atravessa-la com sua mula, mas fazer a travessia com a lhama. Ele balançou a cabeça, negando.
– Nessa mula tem o principal de nosso ouro. Vou atravessar segurando o animal pelo cabresto.
O acidente
Achei loucura. Eu começara a subida do meio para a outra margem, puxando um dos animais, quando, ao olhar para trás, vi que a mula puxada por Ortiz escorregava para um dos cantos da ponte, arrastando-o.
– Solte as rédeas! gritei.
Foi, entretanto, tarde demais. Ortiz, mais preocupado com seu ouro do que com sua vida, entrelaçara as rédeas em seu braço. Assim, foi arrastado para o abismo junto com a mula sobrecarregada com o peso do metal precioso.
Seu grito desesperado ficou no ar, repetido pelos ecos do cânion. Fiquei paralisado vendo meu amigo e o animal despedaçarem-se nas pedras no meio da torrente, sem, entretanto, poder fazer algo.
O grande amigo e o ouro
Em segundos, homem, ouro e mula foram tragados pelas águas. Foi em estado de choque que atingi, engatinhando, a outra margem. Ñusta, que se afeiçoara a Ortiz, abraçada a Nitaya, gritava e chorava desesperada. Senti as pernas moles, tive que me apoiar em uma árvore e acabei por sentar-me no chão. Não conseguia, aliás, sequer pensar. Fora tudo rápido demais. Perdera o amigo e quase todo o ouro. Teria que refazer minha vida e meus planos. Era um homem arrasado.
Num primeiro momento, não soube o que fazer. Apenas ordenei que todos atravessassem de gatinhas, e os índios por último tranferissem toda carga das outras mulas para as lhamas. Sentei-ne no chão chorando. José, também abalado, cuidou de montar barracas e mandou os índios acenderem o fogo. Nitaya aproximou-se para me consolar e segurou minha mão.
O crucifixo no abismo
Lágrimas desciam por meu rosto. Fiquei uns minutos com ela até que me levantei e fui sozinho para perto da ponte. Do alto fiquei olhando para o rio turbulento lá embaixo. Não havia esperança de recuperar nada e era impossível descer até as pedras. Nesse momento tirei meu crucifíxo do pescoço, peguei-o na mão, olhando-o. Mas, de repente levantei-me, afastei delicadamente Nitaya. Aproximei-me da ponte, olhei o rio. Dei um grito:
– Maldito deus de mierda! Sem pensar em nada, meio enloquecido, joguei o crucifixo no abismo.
O ouro maldito
Por que Deus e a Virgem me abandonaram? O que eu fizera? Olhei para o céu e gritei:
– O que eu fiz, Senhor? O que eu fiz? Diga!, clamei. Abaixei a cabeça e voltei a chorar.
Não sei quanto tempo fiquei ali, imóvel e sozinho com minhas lágrimas. Depois peguei uma moeda de ouro que tinha comigo e olhei para ela. Talvez em razão do sol poente, ou de meu estado de alma, ela me pareceu avermelhada, ou seja, quase cor de sangue. Cheguei a ficar assustado. Cada peça que eu ganhara equivalia a uma vida que eu tirara? Bons tempos aqueles em que eu me perguntava se os índios tinham realmente almas.
E agora?
Voltei-me e olhei para Nitaya e Ñusta, sentadas a uma dezena de passos, sob uma árvore, com as crianças à sua volta, agarradas uma à outra, quietas, os rostos sem expressão. Suas almas eram diferentes da minha? E as de nossos filhos igualmente? Lembrei-me, então, da conversa que tivera com Ortiz, quando dissera que não queria matar espanhóis e ele me respondeu que não queria matar mais ninguém. Era ele que tinha razão. Olhei o rio lá embaixo com sua forte corrente, cujo barulho chegava até mim.
Deus leva qualquer um?
Se Ortiz era melhor homem do que eu, por que Deus o levara, e não a mim? Lembro-me de que falamos disso.
– Deus leva qualquer um, dizia ele. Afinal, se levasse primeiro os cruéis, Gonzalo e Hernando Pizarro estariam ardendo no inferno há tempos. Lembro-me do sorriso de Ortiz quando afirmara: – Deus cuida do mundo, não tem tempo de ficar acompanhando a vidinha de cada um de nós.
Eu retrucara:
– Não é isso que dizem os padres.
Ele dera de ombros:
– Quem nos garante que sejam donos das verdades divinas?
Tentando entender
Olhei novamente para a moeda, que parecia cada vez mais vermelha. Eu tentava entender. Voltei meus pensamentos a Deus, pedindo um sinal, algo que me dissesse que eu não fora esquecido por Ele. Mas, nada aconteceu. Ou seja, talvez o Pai não quisesse mais saber de mim, pensei, enquanto sentia as lágrimas escorrendo pelo rosto. Só no dia seguinte, depois de uma noite de pesadelos, consegui me acalmar. Perdera um grande amigo e também boa parte do ouro que tínhamos conseguido a custa de muito sangue.
Eu tinha um saquinho com esmeraldas em volta do pescoço e algum ouro que fora colocado com mercadorias em outra das mulas.
Não era tão pouco, mas sobrara aproximadamente um quarto do que eu possuía. Ou seja, na Espanha, não seria um homem de fato rico com pretendia. Pablo fora prudente, partira antes, porém, com muito mais. Deveria ficar no Peru e tentar recuperar o que perdera? A situação agora era muito mais difícil. Além de novos piruleros chegarem todos os dias da Espanha para tentarem sua sorte, o metal precioso se fazia mais raro. Sem saber o que fazer, tomei a decisão de continuar rumo a Lima.
Na Ciudad de los Reyes
Em Lima, procurei por Pizarro e contei-lhe o que ocorrera. O Velho olhou-me compadecido, mostrando-se triste por perder Ortiz, de quem gostava.
– Ele era um bravo – disse apenas.
Depois chamou um dos pajens e disse-lhe para me levar até uma cabana, onde ficaria com José e as índias. Também me engajou nas tropas limenhas, pagando-me bastante bem. Ou seja me garantiria, pelo menos, algumas moedas de ouro como soldo, na condição de ser um dos “Treze da Fama”.
A tensão entre os grupos rivais
Em agosto de 1537 era grande a tensão entre os espanhóis: o impasse fora criado e a rivalidade crescia entre os veteranos de Cajamarca e os soldados de Almagro, a maioria na pobreza. Assim, relatos chegados de Cusco mencionavam que os atos de banditismo praticados por eles. Os ataques contra encomienderos tornavam-se também cada dia mais comuns. Para atender a seus homens, que exigiam ouro e terras, Almagro, que precisava garantir a posse da antiga capital inca, fechava os olhos a esses atos.
Negociar
A negociação parecia o único caminho, mas tomou muito tempo. Afinal, Almagro e Pizarro não conseguiam chegar a um acordo. Até mesmo a escolha dos que realizariam a arbitragem estendeu-se por longos períodos, antes de os dois lados concordarem que frei Francisco de Bobadilha poderia ser o juiz da contenda. A sugestão, vinda da parte de Almagro, acabou aceita por Pizarro. Dessa forma, um encontro foi marcado no povoado índio de Mala.
Os planos de Gonzalo
Cada um devia chegar no dia 13 de novembro acompanhado apenas de seus procuradores e de poucos cavaleiros. Ninguém imaginava que Gonzalo, com setecentos cavaleiros, estivesse seguindo de longe a comitiva do irmão. Ou seja, não falou de seus planos nem mesmo com Francisco. Escondera-se, assim, fora do vale, entre o capinzal. Sua intenção era capturar Almagro e eliminá-lo.
Pizarro convocara a mim e a José para ir com ele. Ficaríamos, durante as negociações, hospedados em Mala.
Um reencontro frio
Apesar de pertencer ao lado pizarrista, escapei de fazer parte do grupo de Gonzalo. Já servira Almagro em Quito e não queria, portanto me envolver na sua prisão, nem, muito menos, em sua morte. Quando os dois antigos sócios se reuniram em Mala, o reencontro foi frio. Almagro abriu os braços para abraçá-lo, mas Pizarro apenas lhe estendeu a mão. A conversa entre os dois velhos, como eu já imaginara, iniciou-se com acusações mútuas e recriminações.
Hernando libertado
Estavam nisso quando Almagro foi alertado por um dos seus, que o avisou sobre a cilada preparada por Gonzalo. Assim, o Adelantado, fora de si, tratou o árbitro de “vendido” e “traidor”. Não reconheceu a decisão; exigiu novo julgamento. Pizarro, que desejava, antes de mais nada, a libertação de seu irmão, concordou. Assim, mediante um acordo, Hernando foi solto. Indignado, Rodrigo Orgóñez disse ao Adelantado que isso lhes custaria a vida. Posteriormente descobriríamos que ele tinha razão.
– É o pescoço dele ou os nossos.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: Pizarristas atacam almagristas em Cusco
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