Hernando Pizarro volta da Espanha
Logo, após a partida de Pizarro, em março de 1536, seu irmão, Hernando chega a Cusco, vindo de Madri. Ele estivera um tempo na Espanha. Durante sua estada no reino, entregara, aliás, ao Imperador o quinto real do resgate de Atahualpa. Com um trunfo desses, foi assim encarregado de reunir igualmente a parte do tesouro obtido em Cusco que caberia a Carlos V.
Dessa forma, coberto de glória, fora consagrado Cavaleiro de Santiago. Em suma, desembarcou no Peru com cédulas reales que garantiam assim a posse de Cusco para seu irmão. Tinha, entretanto, por missão obter o máximo possível de ouro para a Coroa espanhola. Esta, aliás, enfrentava, pesados gastos nas guerras na África e contava com esse ouro. Antes, porém, de seguir para Cusco Hernando encontrou-se em Lima com o irmão Francisco Pizarro. Foi quando o Gobernador o nomeou comandante militar de Cusco.
A mão pesada sobre os nativos
Novos problemas surgiram, porém, pouco antes da sua chegada a Cusco. Ou seja, os índios estavam revoltados com os abusos dos vecinos, que lhes exigiam cada vez mais ouro. Assim, acabaram matando alguns deles. Dessa forma, para punir os nativos, Juan e Gonzalo Pizarro organizaram expedições pelos arredores de Cusco que agravaram ainda mais a situação. Os dois irmãos, afinal, massacraram não só os homens, mas também crianças e mulheres. Ainda mais, incendiaram casas, deixaram seus soldados violentarem as índias. Quando um religioso questionou o rigor do castigo, Gonzalo retrucou:
– Não adianta punir esses miseráveis pela metade. Deixe essas crianças viverem e elas crescerão querendo se vingar de nós.
Eu participara de uma dessas expedições – felizmente, porém, apenas como intérprete. Assim, vi coisas que nunca em minha vida gostaria de ter visto. Como, por exemplo, o corpo de uma criança degolada, que me fez pensar em meu filho. Afinal, em mais alguns anos ele talvez se parecesse com o indiozinho assassinado. A cena não me saiu da cabeça e fiquei feliz quando voltamos para Cusco.
As barbaridades em nome do rei e da Igreja
Quando chegou a noite, contei a Ortiz o que presenciara. Ficamos ambos um longo tempo em silêncio. Nitaya e Ñusta, viram minhas mãos tremerem ao relatar ao que assistira. Não entenderam, porém, o que aconteceu. Mas nenhum de nós dois teve coragem de contar às nossas companheiras as barbaridades comentidas pelos espanhois em nome de nossa fé (o do ouro?), e que nos envergonhavam.
Finalmente, Ortiz virou-se para mim:
– Homem, devemos ir embora daqui. Não aguento mais ouvir sermões sobre a Verdadeira Fé e ter como chefes os irmãos de Pizarro. Não quero, aliás, ser cúmplice dessas barbaridades cometidas em nome de nosso rei e do cristianismo.
Eu também não queria. Muitos anos depois eu ficaria sabendo que muitos índios acabaram sendo queimados vivos pelos religiosos da Inquisição em Lima por continuar a acreditar em seus deuses.
Compreendendo os índios
Éramos mais próximos dos nativos que a maioria dos espanhóis: as mães de nossos filhos eram índias. Ainda mais, convivemos com Achachíc e José e, também, falávamos quéchua. Depois de alguns anos em contato com eles, víamos os índios, afinal, como pessoas de verdade. Em suma, dotadas de alma e também de sentimentos. Compreendíamos, portanto, melhor esse povo do quie a maioria dos soldados. Ou seja, repudiávamos certas crueldades cometidas pelos irmãos Pizarro. Ortiz comentou que, com suas expedições punitivas, Juan e Gonzalo conseguiram que até as tribos inimigas dos quéchuas se unissem a esses contra os espanhóis.
A gota d’água
Além disso, os dois irmãos, estavam constantemente embriagados, contrariando, aliás, as ordens do Gobernador. Dessa forma, bêbados, cometeram as maiores barbaridades. Mandaram, por exemplo, acorrentar o soberano quéchua Manco Yupanqui Inca, depois que ele se recusara a lhe entregar suas outras esposas e irmãs. O ato de tomá-las à força foi a gota d’água que indispôs os índios contra os espanhóis. Ainda mais,: bêbados, urinaram sobre o Inca acorrentado, insultando-o e cuspindo-lhe na cara. O ódio que isso causou entre os índios foi imenso. Achachíc estava indignado.
– Manco Yupanqui Inca era um amigo dos espanhóis. Vocês estão cometendo um erro muito grande. Olhei para o Achachic que não conseguia esconder sua irritação.
– Achachíc, você tem toda razão. Mas nem todo espanhol aprova Gonzalo e Juan.
O inca balançou a cabeça:
– Pode ser, mas eles fazem o que querem. Eles mandam e vocês obedecem.
O clã Pizarro descontrolado
Era verdade. O próprio Francisco Pizarro tinha igualmente muita dificuldade em controlar a crueldade de seus irmãos. Afinal, sua arrogância lhe causava problemas não apenas entre os índios, mas também entre os espanhóis. Se Hernando de Soto voltara para a Espanha era porque os dois o desacreditaram perante os encomienderos e, também minaram a disciplina dos soldados. Todos nós, inclusive Soto, tínhamos medo de Juan e Gonzalo. Os dois seguiam suas próprias leis, e ninguém mais sabia o que eram capazes de fazer.
Hernando, junto com alguns soldados, eu entre eles, encontrou o Inca cheio de correntes e jogado no chão. Em geral cruel com os nativos, ele, entretanto, mandou soltá-lo. Filho de um fidalgo, e agora detentor da Ordem de Santiago, Hernando achava que nobres, mesmo que fossem índios, não podiam ser tratados daquela forma. Ou seja, humilhações deveriam ser reservadas aos plebeus. Além disso, precisava da colaboração de Yupanqui para obter mais ouro para a Coroa e controlar os índios, que começavam igualmente a se revoltar em toda a região de Cuscoe arredores.
Mais ouro?
Dias mais tarde Ortiz, José e eu fomos chamados por Hernando Pizarro. Parece que Yupanqui tinha algo a propor, e Hernando queria entender exatamente o que estava se passando. – Quer mais ouro? – perguntou o Inca.
Hernando o mediu e voltou-se para José:
– Diga-lhe que sim.
Manco disse-lhe, então, saber da existência de estátuas de ouro em Yucay, que teriam pertencido a seu pai. Os olhos de Hernando brilharam.
O Inca explicou, porém, que somente se fosse sozinho como soberano os caciques lhe mostrariam onde o tesouro estava guardado. Hernando afinal acabou por concordar, contra a opinião de Juan e Gonzalo Pizarro. Este último o advertiu:
– Esse índio vai fugir.
Ele tinha razão e devia saber, mais do que ninguém, por que Yupanqui, antes disposto à amizade com os viracochas, passara a odiá-los.
Cusco cercada
Era um dia ensolarado de abril. Ortiz e eu estávamos com Nitaya e Ñusta em nossa casa de pedra não longe do centro de Cusco quando escutamos gritos de alarme em espanhol. Logo soubemos que a cidade estava cercada por multidões de índios comandados por Manco Yupanqui Inca e pelo sacerdote Villaoma. Este era um dos mentores da revolta, que provavelmente incentivara o imperador inca a rebelar-se contra os espanhóis.
Logo depois chegou José, que nos disse que ocorria uma sublevação geral. Ou seja, não apenas dos quéchuas, mas também de outras tribos. A intenção era não deixar um só cristão vivo.
– Viu Achachíc por aí?
José abaixou a cabeça:
– Ele se foi. Disse, porém, que continua um amigo.. Precisa, entretanto juntar-se ao seu povo.
Entreolhamo-nos.
– Eu estava adivinhando.
Ortiz concordou e acrescentou;
– Ele tem dignidade. É um inca, nós somos soldados inimigos. – Fechou os olhos um momento. – Sabe do que eu mais tenho medo?
– De quê? – perguntei, já adivinhando a resposta.
– De me defrontar com ele em uma batalha e ter que matá-lo. Eu gosto desse índio.
Respirei fundo:
– Queria pelo menos poder apertar sua mão uma última vez… Esse é mais hábito espanhol que ele aprendeu.
Pagando pelos erros dos Pizarros
Com a situação assim, nos reunimos na Plaza de Armas. Muitos dos vecinos protestaram contra a ingenuidade de Hernando ao acreditar em Yupanqui. Ortiz balançou a cabeça, inconformado.
– Essa é a obra de Gonzalo e Juan. Abaixou a voz, como se tivesse medo de ser ouvido: – A revolta estourou por causa deles. Talvez agora todos nós paguemos pelos atos desses dois e dos vecinos.
No dia seguinte os arredores de Cusco, inclusive a fortaleza de Sacsayhuamán, já tinham sido tomados pelos nativos. Ao mesmo tempo, todas as investidas comandadas por Hernando foram mal-sucedidas. Afinal, dentro da cidade, onde as ruas eram estreitas, o cavalo era inútil.
Os espanhois sob ataque
Dessa forma, encorajados, os guerreiros quéchuas começaram a pôr fogo nos telhados de palha e incendiar a cidade. Logo passaram também a derrubar as paredes de pedra das casas, bloqueando certas ruas. Começaram igualmente a desenvolver táticas que funcionavam bem com os cavalos, abrindo fossos na rua. Assim, abandonamos as casas às pressas e nos refugiamos nos palácios da praça.
Na praça deparamos com Hernando. Parecia nervoso. Enxugou o suor da testa.
– Desconfio que esses selvagens estão aprendendo a nos enfrentar – murmurou, preocupado a Juan, ao seu lado.
Enfim, vivíamos um momento crítico. Estávamos sitiados. Ou seja sem meios de sair de Cusco ou de mandar uma mensagem para Pizarro em Lima, pedindo ajuda.
Confinados na Plaza de Armas
A rebelião estendeu-se durante um bom tempo e, no final, confinados na Plaza de Armas, víamos o alimento se tornando a cada dia mais escasso. Nunca sabíamos se conseguiríamos chegar à noite vivos. Alguns, mais assustados, entre eles Álvaro de Toledo, propuseram, assim, que fugíssemos da cidade durante a noite, rumo ao litoral. Os olhos de Hernando brilharam ao escutar esse tipo de proposta.
– O primeiro filho da puta covarde que desertar, eu mato. Se eu for morrer nesta terra, será de espada na mão. Isso vale para todos vocês. Aliás, quem tentar sair será capturado pelos índios e já sabe o que o aguarda – disse, passando a mão pelo pescoço, simulando uma degola.
Estremeci, mas sabia muito bem que, se fôssemos capturados, a morte seria muito pior do que tão somente perdermos o pescoço.
Situação aflitiva
Estávamos cercados por milhares de índios, com as comunicações cortadas, racionando de tudo, até a lenha que tínhamos. Embora todos soubessem que os responsáveis por aquela rebelião eram Gonzalo e Juan, ninguém se atrevia a dizer. Creio que até Hernando estava furioso com os dois. Mais de uma vez sonhei acordado, imaginando-os sendo flechados ou abatidos a pedradas… Mal sabia eu que Gonzalo seria posteriormente vítima de uma pedra lançada por uma funda.
Os índios, por sua vez, estavam bem instalados em Sacsayhuamán e deviam ter comida. Dedicavam-se, portanto a lançar ataques contra a cidade. Assim, provocavam incêndios e se refugiavam novamente na fortaleza. O cheiro de queimado espalhava-se pela cidade, chegando até nós. Tínhamos que estar atentos, pois os ataques eram incessantes. De dia, avistávamos nuvens de fumaça que se erguiam aqui e ali e, à noite, os clarões provocados pelos incêndios.
– Parece que esses miseráveis nunca dormem – resmungou um soldado.
Tensão permanente
O pior é que os dias, semanas e meses se passavam sem novidades. Só a tensão era permanente. A cada dia acordávamos com a esperança de que tropas espanholas conduzidas por Pizarro viessem nos socorrer. Mas elas nunca chegavam. Por que o Gobernador não nos acudia?
Para nos impedir de dormir e nos assustar durante o dia e mesmo à noite, os índios utilizavam táticas como gritos, rugidos, sons semelhantes ao piar agourento da coruja e todo tipo de barulhos que nos deixavam com os nervos à flor da pele.
Juan Pizarro era um dos mais nervosos. Talvez porque imaginasse o que o esperava se Yupanqui pusesse as mãos nele e em seu irmão Gonzalo. Como sabia que tínhamos mais contato com os índios, perguntou a Ortiz e a mim o que achávamos que aconteceria com os dois se os cusquenhos os capturassem. Fomos cuidadosos nas respostas, mas não deixamos passar a oportunidade de aterrorizá-lo.
– Capitão – disse Ortiz –, não sei sei devemos falar disso.
O prazer de apavorar o clã Pizarro
– Fale, homem! Pensa que tenho medo?
Meu amigo deu de ombros. Se ele queria mesmo saber… Chegou a ser engraçado. Ortiz se empenhou, portanto, em provocar pesadelos em Gonzalo.
– Não o matarão rapidamente, mas aos poucos. Primeiro, farão o que vocês fizeram com Yupanqui: mijarão em cima. Achachíc disse que começarão queimando suas bolas.
Juan ficou pálido.
– Você está brincando! Ele não deve ter dito isso.
Ortiz conservou-se calmo:
– Não estou brincando. Foi o que o índio disse. Vocês violentaram a mulher de Yupanqui e o humilharam. Eles o odeiam.Ou seja, agora querem vingança.
– É verdade, capitão – confirmei. – Eles querem arrancar sua pele para fazer um tambor. Já vimos alguns desses tambores feitos de pele humana. Acho que você também viu, quando estávamos no litoral. Desejam, em suma querem que sua morte seja sofrida.
Juan ficou paralisado, gaguejou.
– Não me pegarão vivo.
Praguejou, voltou-nos as costas, se afastou para conversar com Gonzalo. Mesmo de longe pudemos ver que ambos estavam alterados.
– Parece que assustamos o filho da puta. Hoje à noite em não vai dormir...
Encarando fome e emboscadas
– Acho que sim, concordou Ortiz. Meu amigo, nosso destino não deverá ser muito diferente. Talvez não comecem pelas bolas, mas é provável que nos matem.
Os ataques continuaram. Os índios nos emboscavam, fugiam, mas tinham receio de invadir a praça. Só corríamos risco ao procurar comida nas casas não destruídas das ruelas.
Nelas ocasionalmente encontrávamos batata, milho ou porquinhos-da-índia. Enfim, na busca por comida devíamos ficar sempre atentos às ciladas. Afinal, nunca sabíamos se índios nos espreitavam. Uma tarde, ao tentar laçar lhamas que pastavam tranquilamente em uma esquina, fomos alvos de flechadas e de pedras lançadas por fundeiros. As lhamas escaparam.
Atingidos
Um dos nossos foi ferido na cabeça por uma pedra do tamanho de um punho fechado. Caiu desmaiado. Assim, tivemos que carregá-lo, ensanguentado, de volta para a praça. Quando o viu, Hernando não teve comiseração:
– Já avisei a esses idiotas para não saírem sem seus capacetes. Se esse imbecil fizesse o que a gente manda não estaria com a cabeça aberta. Bem feito! Chamem o barbeiro-cirurgião para costurar a cabeça desse imbecil.
Além dos espanhóis, os índios de tribos nossas aliadas, como os tallans, também temiam ser capturados pelos quéchuas. José era um que vivia apavorado com essa possibilidade.
– Sofremos nas mãos de Atahualpa, agora vamos ser mortos pelos partidários de Yupanqui.
– Calma. Eles ainda não nos venceram, retruquei, tentando animá-lo.
– Talvez seja questão de tempo…
A necessidade de tomar Sacsayhuamán
Ortiz e eu nos perguntávamos se o ouro que tínhamos enterrado no chão da casa ainda estaria lá.
– Só falta termos perdido tudo – balbuciei, desanimado.
– Lembra-se do que faríamos com todo aquele ouro? De nossos sonhos? – murmurou Ortiz.
Encarei-o desnimado.:
– Sim, mas não quero, aliás, nem pensar.
Após alguns meses de cerco a situação estava se tornando insuportável. Ou seja, não era mais possível esperar. Hernando, militar experiente, percebeu que seria necessário tomar Sacsayhuamán, com todos os riscos que implicasse tal decisão.
– Isso abalará a moral deles.
– As perdas serão grandes – considerou um dos cavaleiros.
– Eu sei. Mas temos que recuperar a fortaleza a qualquer custo. É possível, aliás, que a rebelião já tenha se estendido por todo o Peru. Não podemos contar com reforços. Sabe-se lá se Francisco também não está sitiado em Lima. É estranho que não tenha tentado enviar reforços.
Os preparativos para o ataque a Sacsayhuamán
Depois de desistir de esperar por ajuda, Hernando deu ordens para que começássemos os preparativos para desalojar os incas de Sacsayhuamán. Ortiz, Pablo, Toledo, eu e outros fomos encarregados de olhar os cavalos. Em suma ver se estavam devidamente ferrados e saber do estado dos animais.
Pedro de Candía e alguns de seus ajudantes verificaram as condições das peças de artilharia. Assim, mandou que os artilheiros examinassem o estado de nossos canhões e igualmente a quantidade de munição disponível.
Deixando a praça de armas rumo a Sacsayhuamán
Os melhores atiradores cuidaram igualmente dos arcabuzes e separaram a munição que necessitariam. O restante da tropa ocupou-se das armas brancas. Ou seja, se estavam afiadas, se as lanças tinham suas pontas solidamente fixadas nos cabos e outros detalhes.
Dessa forma, durante a madrugada deixamos a praça na qual nos refugiáramos durante tantos meses. Os índios, ao nos verem subindo em grande número as estreitas ruas de Cusco, rumo a Sacsayhuamán, não tentaram nos enfrentar. OU seja, diferentemente de quando saíamos em pequenos grupos, abrigaram-se, afobados, no forte.
Frente a frente com os índios entricheirados
Quando chegamos com homens, cavalos, escravos e índios aliados à grande esplanada onde ficava Sacsayhuamán, Hernando mandou que as tendas de campanha fossem logo instaladas.
– Não tentarão nos atacar no descampado. Enfim, espero que não.
Juan ficou encarregado do acampamento, enquanto Gonzalo, Ortiz, eu e outros cavaleiros fomos examinar a fortaleza. Antes de partirmos, Hernando chamou Pedro de Candía:
– Prepare as peças. Quando começarmos o ataque, não adianta atirar contra as muralhas. São sólidas demais, ou seja, construídas com pedras pesadíssimas.
Sua artilharia deve fazer com que os obuses façam um arco no céu e caiam dentro do forte.
– Pode deixar. Sei fazer isso – assegurou o grego.
Antes de se afastar, Hernando chamou dois veteranos:
– Cortem árvores compridas e façam escadas em quantidade suficiente. Quero que estejam prontas quando eu voltar, disse, esporando seu cavalo.
Elaborando plano de ataque
Quando o grupo de cavaleiros passou em frente a Sacsayhuamán, os índios irromperam em grande alarido, gritando palavras ofensivas. Batiam as lanças contra os escudos, numa tentativa de nos amedrontar, enquanto tocavam tambores. Pedras e flechas caíram a algumas dezenas de passos de nós.
– Mantenham-se fora do alcance deles – recomendou Hernando enquanto examinava os muros de pedra.
Ao contrário dos fortes na Espanha, as fortalezas incas não eram rodeadas de valas.
Ainda mais, não possuíam uma altura padrão. Assim, certos trechos eram mais baixos e tinham irregularidades que podiam facilitar sua escalada. Sem desmontar, continuamos assim a rodear o forte, observando-o de todos os ângulos possíveis.
– As muralhas laterais a oeste não são tão altas observou Hernando, enquanto elaborava seu plano de ataque.
– E há por perto árvores que podem ajudar a esconder os soldados, comentou Gonzalo. Enfim, só precisaremos trazer várias escadas.
Hernando explica sua estratégia
Hernando detalhou seu plano. Uma parte da artilharia, arcabuzeiros, peões, índios aliados e negros simulariam um ataque procurando distrair o inimigo. Ou seja, fazer os guerreiros incas se concentrarem na parte central das muralhas. Isso feito, os cavaleiros, escondidos entre as árvores com o restante da tropa, arrastariam as escadas para junto dos muros do lado oeste da fortaleza. Assim, abandonando-as ali e afastando-se o mais rápido possível. Devíamos deixá-las, portanto à mão para a infantaria, que se protegeria com escudos e teria cobertura de arcabuzeiros e de algumas peças de artilharia.
O único plano possível
O plano era bom, talvez, aliás, o único possível, aliás. Porém, mesmo que a maior parte dos guerreiros quéchuas se concentrasse no centro da fortaleza, outros continuariam vigiando as laterais. Os cavaleiros seriam, portanto, os primeiros a enfrentar as pedras, setas e lanças atiradas contra os espanhóis quando arrastassem as escadas para perto da muralha. Outro grupo que talvez sofresse pesadas baixas era igualmente o de peões da infantaria. Afinal, ficariam vulneráveis quando abandonassem os escudos para apanhar as escadas e encostá-las nos pontos em que as muralhas poderiam ser escaladas mais facilmente. Se conseguíssemos, porém, penetrar no forte, lá dentro, com nossas armas de ferro, levaríamos vantagem sobre os índios.
Hernando apontou para a imensa fortaleza.
– Eles não estavam esperando que resolvêssemos atacá-los. Temos que fazê-lo antes que reforcem suas defesas.
O ataque espanhol a Sacsayhuamán
Com as escadas prontas, a cavalaria se escondeu entre as árvores. Teríamos que contar três tiros de canhão. Só quando o terceiro tiro fosse disparado contra o setor frontal do forte os soldados avançariam com as escadas.
Escondidos entre o arvoredo, Ortiz, Álvaro, eu e outros cavaleiros ficamos aguardando, a tensão estampada no rosto de cada um. De longe escutamos o alarido e vimos que parte dos quéchuas correu para o centro da fortaleza, desguarnecendo, assim, parcialmente o lado oeste, onde iríamos atacar. O primeiro tiro de canhão provocou um estrondo que fez um bando de corvos baterem asas. Minutos depois, escutamos o segundo tiro. Toledo, a meu lado, benzeu-se. Quando o terceiro tiro soou, Gonzalo fez sinal para que avançássemos com as escadas.
O perigo das pedras
Nós o fizemos rapidamente, mas alguns índios que tomavam conta da lateral do forte nos viram. Pedras vindas do alto, jogadas pelos fundeiros, zuniam rentes às nossas cabeças; lanças eram atiradas do alto das muralhas sobre nós. Sou obrigado a reconhecer, muitos desses índios eram hábeis no manejo das fundas. Ou seja, se fôssemos atingidos, nem nossos capacetes nos protegeriam devidamente. Quanto mais nos aproximávamos, mais riscos estaríamos correndo.
A vinte passos dos muros, soltamos as escadas para a infantaria cuidar de apoia-las nas muralhas da fortaleza. O cavalo de Ortiz foi, porém, atingido de raspão, empinou e ele caiu. Por sorte, não estava machucado. Assim, levantou-se.
– Alcance meu cavalo e segure as rédeas para que eu possa montar! gritou.
Fiz o que ele disse. Persegui sua montaria, segurei-a e levei-a até ele. Em seguida disparamos rumo às árvores sob uma chuva de lanças, flechas e pedras.
– Jesus!
A artilharia de Candia
Iniciados os combates Pizarro chamou Candia e mandou que posicionasse seus canhões.
– Vamos dar uma lição nesses índios!
A artilharia foi um dos fatores importantes da vitória dos espanhois. Cândia, artilheiro experiente conseguiu, de fato organizar os disparos de modo a atingir o interior da fortaleza. Naquele momento nossos arcabuzeiros passaram igualmente a atirar contra os defensores de Sacsayhuamán.
O fogo das armas, confundiu, assim, aos quéchuas. Os peões de nossa infantaria, protegidos por escudos puderam dessa forma avançar e apoiar as escadas contra os muros do forte. Vários espanhóis, porém, foram atingidos, dentre eles Juan Pizarro, que caiu gravemente ferido. Dois soldados o trouxeram até nós. Olhei-o ensopado em seu próprio sangue, deitado no gramado no meio do arvoredo. Não senti pena. Aliás, dias depois, morreria. Por pedrada. “Como un pajarito” como comentou Ortiz.
Uma poderosa fortaleza, mal construída
Creio que, em parte, nosso sucesso em tomar a fortaleza se deveu à inexperiência militar dos índios. Embora um simples fosso ou o uso de lanças de madeira fincadas no solo pudesse dificultar o ataque, em nenhum momento pensaram nisso. Ou seja, sequer se organizaram-se para impedir que usássemos as escadas. Também se expuseram aos arcabuzes, sem tentar se abrigar: escutávamos um estampido e depois víamos um corpo rodopiando no ar e caindo de uma das torres. Pudemos, igualmente, contar com a ajuda de índios de outras regiões, inimigos dos incas e também de escravos negros. Essa foi a batalha mais sangrenta que travamos em solo peruano. Ou seja, por muito pouco não fomos derrotados.
A tomada de Sacsyhuaman
À medida que os espanhóis conseguiam penetrar na fortaleza, mais cruéis se tornaram os combates. As ordens de Hernando eram, aliás, de não fazer prisioneiros.
– Matem todos que encontrarem.
Os defensores de Sacsayhuamán foram sendo, portanto, executados, muitos deles pelos índios de tribos dominadas pelos incas. As rochas e o solo se tingiram de vermelho. Havia sangue em todo lugar. Às vezes poças.
Poças de sangue
Era tanto sangue que em alguns lugares ele empoçava até escorrer pelas pedras, misturando-se a fezes e urina, já que, quando as pessoas morrem, frquentemente perdem seus controles corporais. O cheiro era, portanto, nauseabundo. Enfim, tornou-se impossível andar por lá e não tropeçar num corpo sem braço ou sem cabeça.
Com a vitória quase assegurada, passamos também a investigar cada cômodo da fortaleza. Um dos soldados, que também procurava por fugitivos, nos mostrou aposentos no nível mais abaixo.
Salvando Achachíc
– Tenho a impressão de ter visto alguém se escondendo ali.
Ortiz e eu fomos verificar. O cômodo estava silencioso e escuro. Mesmo assim, entramos cautelosos, espadas nas mãos.
– Tem alguém – disse Ortiz.
De fato, havia um índio imóvel, com uma lança na mão, encostado na parede no fundo do aposento. Olhamos para ele por um momento, até nos habituarmos à penumbra. Assim, fomos reconhecendo seus traços. Era Achachíc. Olhamo-nos. Ele permanecia calado e imóvel e nós mesmos não sabíamos o que dizer ou fazer. Finalmente, senti a mão de Ortiz em meu ombro:
– Vamos embora. Ou seja, fingiremos que não vimos nada. Você tem coragem de matá-lo?
– Não conseguiria.
– Nem eu… Certamente que não.
Achachic, então saiu de seu canto, nos estendeu a mão. O abraçamos e partimos depressa.
Por que Deus não protege os índios?
Saímos do cômodo sem olhar para trás. Pensei que, se Hernando ou Gonzalo soubessem que o poupamos, pagaríamos caro. Talvez fôssemos, ainda mais, acusados de traição. Mas, era Achachíc quem estava certo, como Ortiz já comentara:
– Não são eles que estão invadindo a Espanha. Somos nós que estamos conquistando o país deles.
Nunca soubemos se Achachíc conseguiu manter-se escondido em seu canto e escapou à noite de Sacsayhuamán Ou seja, se foi morto como milhares de outros quéchuas. À noite, em silêncio, rezei por ele, pedindo ao Pai que o poupasse. Depois dormi pensando porque Deus não protegia aos índios.
– Ele é um bom índio, Senhor.
Uma vitória com pesadas perdas
Após o final dos combates, constatamos que nossas perdas foram elevadas. Enfim, muito menores do que as sofridas pelos índios. Procuramos por Toledo, que sofrera um golpe de lança no ombro. Fora, entretanto, um ferimento leve, do qual se recuperaria em alguns dias. Um madrilenho que andava sempre com ele, talvez por serem da mesma região, morrera. Álvaro chorava, pois tinham se tornado amigos e, juntos, chegaram a tecer planos sobre o que fariam da vida quando voltassem com seu ouro para a Espanha. Tinham também prometido um ao outro avisar suas respectivas famílias se um deles morresse. Outros soldados lamentaram igualmente a morte de amigos e irmãos. Além da tristeza, ainda sentíamos o susto, que fora grande.
Uma vitória difícil no resto do país
Ninguém se animou a festejar a vitória. Assim, em clima de luto, uma missa pelos mortos foi rezada na igreja da praça. A revolta, entretanto se estendeu a todo o Peru. Os incas chegaram a tentar, com sucesso relativo, adotar novas táticas. Ou seja, cavar armadilhas para os cavalos e rolar pedras do alto de elevações nos desfiladeiros, sobre os espanhóis. Raramente, porém, souberam nos enfrentar de forma organizada. Quando o fizeram, já era tarde demais. Em suma, tínhamos nos tornado mais numerosos e bem armados. E, igualmente, recrutáramos para nossa causa tribos dominadas pelos incas.
Os erros dos incas que nos ajudaram
Os nativos demoraram muito para aprender a lidar com a ameaça representada pelos cavalos e, dessa forma, armar emboscadas. Nunca, aliás, tentaram criar os cavalos que capturavam e aprender a montar. O que faziam era descarregar sua ira sobre os pobres animais. Em suma, vingavam-se nos cavalos. Assim, raivosos, os matavam com golpes de lança ou a pedradas. Dessa forma, perderam sua única chance de anular o principal trunfo espanhol: ou seja, a cavalaria.
Os fatores que contribuíram para a vitória espanhola
Não foi, porém, apenas o fator militar que fez pender a balança para o lado dos castelhanos. Mais experientes e com melhores armas, éramos igualmente em menor número. Ou seja precisávamos de menos comida. As tropas índias, constituídas por milhares de guerreiros arrancados de suas lavouras, precisavam ser alimentadas.
Além disso, a epidemia de varíola e a mortandade provocada por ela destruíram igualmente sua organização. Em ouras palavras, ela já não era a mesma dos tempos em que os grandes senhores incas comandavam um poderoso império. Em suma, a situação era outra.
Acuados pelo estômago
Os guerreiros-agricultores tiveram, portanto, que voltar para as suas plantações abandonadas. Ou seja, era preciso parar a guerra para colher o milho e fazer novo plantio. Afinal, os depósitos de alimentos, armas, roupas e objetos tinham sido saqueados pelos espanhóis. Os nativos não possuíam, portanto, reservas. Foram, aliás, os saques daqueles depósitos que nos permitiriam sobreviver ao cerco.
Enfim, deixamos os índios na penúria. Precisavam, portanto cuidar da produção de alimentos. Dedicarem-se, assim da colheita, e igualmente a criação de lhamas. Logo, se continuassem a resistência aos espanhois, morreriam de fome. Assim, começaram as deserções e logo Manco Yupanqui viu-se isolado com poucos guerreiros e sem condições de prosseguir a luta.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: Levantes incas em Cusco e Lima
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