Huyalas
Prosseguindo pelas terras altas chegamos a Huyalas, onde fizemos pausa de uma semana, quando aproveitamos para aprendemos mais sobre a colonização inca. Quase não chovia fazia. Porém, fazia frio. Assim, à noite, nos enrolávamos em ponchos de alpaca retirados dos depósitos de Atahualpa. Também nos reuníamos em volta de uma fogueira para nos esquentar. Além dos ponchos dos depósitos, nossas companheiras nativas também teciam mantas quentinhas de alpaca, tornando dessa forma nossas noites bem mais aconchegantes.
Alpacas, vicunhas, guanacos
Fomos bem recebidos naquela aldeia. Em suma, tínhamos o que comer. Em outras palavras, tínhamos principalmente milho, igualmente muitas frutas e, ainda mais, um luxo, a carne de lhama grelhada. Embora alguns espanhóis ainda continuassem a chamar esses animais de cordeiros do Peru, sabíamos que as lhamas não eram realmente ovelhas, animal que, aliás, não existia no Império Inca.
– Parecem mais com camelos – disse um soldado que já havia estado no norte da África. Sua carne tinha, aliás, menos gordura do que a dos cordeiros espanhóis e sua lã era igualmente outra. A lã de lhama era assim a mais comum, mas de qualidade inferior à de outros dois animais que existiam por lá. Ou seja, a vicunha e a alpaca, bastante parecidos com ela, mas menores.
Houve noites que choveu granizo e também nevou. Enfim como, estávamos alimentados e aquecidos. Logo isso não tinha importância. Aliás, em nenhum outro momento dessa aventura tivemos tanto conforto. Só nos incomodava, porém, a eterna insegurança. Assim, todas as noites, sentinelas eram colocados em lugares estratégicos da aldeia. Parte dos cavalos era igualmente mantida selada. Nossas armas eram também conservadas à mão. Pizarro tentava nos tranquilizar:
– São apenas precauções.
A pausa em Huyalas
A pausa em Huyalas nos permitiu continuar a ensinar espanhol a Achachíc. O nobre inca, aliás, àquela altura, já estava familiarizado com Ortiz e comigo. Pizarro nos perguntara como os incas conseguiam obter a obediência de todos em um país onde aparentemente não existiam prisões. Presídios como os que existiam na Espanha eram, portanto algo quase incompreensível para eles.Ou seja, entre os incas alguém podia ficar aprisionado em um cômodo até ser punido. Era, porém, uma detenção provisória, até a pena ser aplicada ou o índio liberado. Não existiam, portanto prisões. Ou seja, ninguém era encarcerado para pagar por um crime cometido. Achachíc riu:
– Não temos nada disso.
Ortiz pensou um instante.
– Mas… – disse ele, quem comete um crime menos grave, como é punido? Na Espanha passa um tempo na prisão, depois é solto.
O trabalho inútil
O inca explicou que quem cometesse uma falta menor ou fosse indolente era castigado. Em suma, realizando algo pior do que o trabalho forçado: o “trabalho inútil”. Devia, assim, deslocar uma enorme pedra até um determinado lugar. Quando terminava a tarefa, mandavam que colocasse a tal pedra de volta onde estava anteriormente.
Muitas vezes também toda uma comunidade pagava pelos atos cometidos por um de seus membros. Isso fazia com que a obediência às leis incas se tornasse tarefa coletiva.
A lei, como tudo, era baseada nos costumes. Dessa forma, na falta da escrita, as ordens reais eram divulgadas por mensageiros que iam de aldeia em aldeia, anunciando-as. Assim, ninguém podia alegar ignorância.
Punições severas
As punições para crimes de maior gravidade, como homicídio, relações com uma Virgem do Sol e outros eram severas. Ou seja, desencorajavam qualquer infração. António Ortiz e eu nos entreolhamos com um sorriso. Nossas companheiras eram Virgens do Sol…
Fiquei, aliás, impressionado com as formas cruéis com que eram executadas as condenações à morte entre os incas. O sentenciado por crimes graves podia portanto ser encerrado em um compartimento subterrâneo com insetos venenosos, cobras peçanhentas, pumas ou condores.Ou seja, suas possibilidades de sobrevivência eram, portanto remotas.
Se em dois dias ainda estivesse vivo, o Inca o perdoaria. Havia igualmente outras penas, como os castigos corporais, o exílio, a perda de cargo e, para as infrações mais leves, a humilhação pública.
– Na Espanha não é melhor – disse Ortiz. – Morrer no garrote ou ser queimado vivo? Em suma, a opção que os espanhois deram a Atahualpa…
A colonização inca: os três mandamentos
Achachíc continuou.
– Normalmente, se os novos súditos desse povos conquistados pagassem seus impostos e trabalhassem, não eram portanto molestados. Eu cuidava, assim, da aplicação dos três mandamentos principais: Ama k’ella (“Não seja preguiçoso”), Ama llulla (“Não seja mentiroso”) e Ama sua (“Não seja ladrão”). Mas não tinha muito trabalho… – disse. – Em suma, todos tinham esses mandamentos bem claros na cabeça. Aliás, muitos dos que cometiam delitos, acusados também por sua própria consciência e com medo de terem suas almas condenadas para sempre, se entregavam a mim para serem punidos.
Era assim, portanto, a colonização inca. (Nota do Autor. Esses princípios existem tb no congresso brasileiro atual Só não são repeitados…)
Prosseguindo rumo a Cusco
Após essa semana de descanso Pizarro mandou que prosseguíssemos rumo a Cusco. Passamos, assim, por Cajatambo, cruzamos a cansativa e gelada cordilheira de Huayhuash e contornamos a laguna de Chinchaycocha até o rio Mantaro, para alcançar o Pampa de Junín. O trecho mais duro foi na serra. Ou seja, eu e outros soldados começamos a ter problemas com a altitude. Contrariando o conselho de José, realizei, porém, demasiados esforços físicos. Como resultado, tive a pior dor de cabeça da minha vida. Não fui o único, aliás. Toledo e outros passaram por experiências semelhantes.
Dessa forma, tornamo-nos imprestáveis para qualquer serviço. Se fôssemos atacados acho que não teríamos condições sequer de nos defender. A dor era tamanha que estávamos tontos e mal conseguíamos nos manter sobre a sela.
As mágicas folhas verdes
– Se continuar, prefiro morrer – disse Toledo, que viajava de olhos fechados e uma das mãos na testa. José, que caminhava do meu lado, explicou:
– Só vai passar quando começarmos a descer para o vale. Mas sua dor de cabeça pode melhorar se mascarem isto – tirou um punhado de folhas verdes de um saco que trazia a tiracolo.
Eu as conhecia, eram as mesmas folhas de coca com as quais Nitaya e Ñusta nos preparavam chá todas as manhãs. Só que, mascadas, tinham efeito mais intenso, chegando a amortecer a boca, que ficava esverdeada. Já havíamos notado, aliás, que as duas índias insistiam, agora que subíamos a serra, que bebêssemos daquele chá. Inicialmente não tínhamos compreendido a razão. Só nos diziam:
– É bom, é bom…
– Masque-as – disse José, mas só engulam o caldo.
O alívio
As tais folhas nos fizeram bem e aliviaram também nossa dor de cabeça. A partir dali, sempre que iamos atravessar lugares de altitude eu pedia a José que nos arrumasse as folhas de coca. Logo todo mundo começou a fazer a mesma coisa. O índio tinha razão. Ele era um tallan, um homem do litoral. Já viajara por aquela região e sabia dos efeitos da altitude, com a qual não estava acostumado. Eu já notara que os índios das serras eram diferentes daqueles da costa. Eram atarracados e troncudos. Deviam ter grandes pulmões. Quando iniciamos a descida para o belo vale que avistávamos do alto, todos imediatamente começaram a melhorar beneficiados pela pouca altitude. Até a vegetação era diferente, mais úmida.
O inimigo invisível
Há tempos que ouvíamos boatos sobre as tropas quitenhas, mas nunca chegamos a avistá-las. O assunto, aliás, até já virara anedota entre os soldados.
– Temos um inimigo invisível – dissera um dos oficiais. Muitos diziam que preferiam enfrentá-las de uma vez a viver nessa ansiedade interminável. No Pampa de Junín, os rumores sobre possíveis emboscadas dos quitenhos se tornaram mais frequentes. Isso fez com que Pizarro, desconfiado, mandasse Almagro à frente de um pelotão a cavalo reconhecer o terreno. Nossos intérpretes, aliás, nos avisaram de que provavelmente o inimigo já tinha informações sobre nossos movimentos.
– Como? perguntou Pizarro, franzindo a sombrancelha.
– Talvez Calcuchimac esteja passando informações aos quitenhos. Ele é um – disse Felipillo.
Pizarro encarou o intérprete. Imagino o que passou por sua cabeça. Filipillo, que fizera tudo para que Atahualpa fosse executado.
E também não gostava de Calcuchimac. Fora, aliás, este último quem comandara o massacre contra os tallans. Era possível, pois, que estivesse novamente buscando vingança. Mas, daquela vez, José, em geral cuidadoso ao dar sua opinião, concordou.
– Melhor vocês vigiarem Calcuchimac.
Pizarro ficou um momento em silêncio, depois mandou chamar Tapac Hualppa. Este ainda não falava nada de espanhol, mas foi interrogado sobre Calcuchimac. Para surpresa de todos, o jovem soberano confiava nos quitenhos e acreditava que, chegando a Cusco, ele o ajudaria a subir ao trono. Era o único que pensava assim. Lembrei-me, então, do olhar que Achachic me dera durante a coração do jovem imperador. Devia julgá-lo ingênuo.
Muitos dos espanhóis também não confiavam nem um pouco em Calcuchimac.
– O melhor seria dar um jeito nesse índio – opinou Hernando, apoiado por Soto e Gonzalo.
Pizarro suspirou e dispensou o Inca e mandou tocarem em frente cuidados redobrados.
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Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: Marcha Penosa
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