Ensinar espanhol aos nobres
A missão era ensinar espanhol ao nobre Achachíc. Pablo não gostou de ser substituído. Porém, Ortiz, era um homem mais instruído. Meu primo, portanto, acabou sendo designado para trabalhos braçais, o que, aliás, não o agradou nem um pouco.
Consolei-o:
– Pizarro nos deu uma recompensa especial por sermos dois dos Treze da Fama e por termos aceitado ir a Cusco. Ou seja, você está mais rico do que Ortiz, não importa. Enfim, cá para nós, primo, você nunca se interessou muito pelas histórias que esses índios nos contam.
Pablo conformou-se:
– É verdade. Ortiz pode ser fidalgo, mas eu tenho mais ouro.
Pizarro nos recomendou que tratássemos bem o índio, o que fizemos. E, logo começamos o ensino de cada som em espanhol.
Achachíc
Acomodamos Achachíc com José, que recebeu a mesma recomendação e foi avisado de que devia nos ajudar. Duas índias foram igualmente designadas para servi-los. Felizmente, o ódio dos tallans era voltado sobretudo contra os quitenhos de Atahualpa, que massacraram seu povo. Ou seja, o nobre se mostrava altivo
e mantinha do tallan a distância requerida por sua posição. Não chegava, porém, a ser insolente. Assim, com a ajuda de José, em pouco tempo Achachíc aprendeu muitas palavras de espanhol.
A chicha morada
Depois de um tempo conosco, embora Achacíc ainda não falasse um espanhol corrente e bem pronunciado, dominava o indispensável para podermos conversar. Além disso, Ortiz e eu mesmo, graças às nossas índias, já falávamos quéchua razoavelmente. Ou seja, isso facilitava nosso entendimento. Assim, depois de jantar com Nitaya e Ñusta, íamos quase todas as noites beber chicha com os dois índios. Como quase todos os espanhóis, aliás, tínhamos nos acostumado à chica morada. Nossas índias preparavam à bebida, com especiarias, um pouco de lima e de abacaxí.
Os nobres no Império Inca
Nobres como Achachíc foram treinados para exercer muitas funções. Deviam cuidar da manutenção das estradas e dos tambos, zelar igualmente pelo recebimento dos tributos. Deviam, ainda mais, controlar os depósitos de produtos agrícolas, metais e roupas. Tudo, aliás, devia contabilizado por meio dos quipús. (Nota do autor: sistema de registro por meio de cordinhas coloridas com nós). As recompensas pelo bom trabalho eram ser transportados em liteiras, ter criados, usar roupas finas e receber mulheres de presente.
– Então – disse Ortiz, um homem comum do povo não pode se tornar um nobre?
– É raro, mas alguns se tornam “nobres de privilégio”.
Não entendi nada.
– Como assim, nobres de privilégio?
Achachic explicou. Eram pessoas comuns que se tornavam nobres porque se destacaram por sua coragem em uma batalha. Ou, então, prestaram serviço importante ao império.
A guerra civil que só ajudou os espanhois
Conforme entendemos nessas conversas com Achachíc, existia ainda uma nobreza formada por curacas de tribos que aceitaram prestar vassalagem ao Inca. Os dois índios tinham em comum o fato de, por razões diferentes, odiarem Atahualpa. José, porque o quitenho massacrara seu povo. Achachíc, porque considerava o soberano quitenho o principal responsável pelas desgraças que se abateram sobre o império. Deu, aliás, a entender que a guerra entre os irmãos acabara por ajudar os espanhóis.
Atahualpa, usurpador
Não respondi, mas sabia que ele tinha razão. Achachíc Insistiu no fato de que Atahualpa era um bastardo usurpador. Ou seja, só Huáscar era Filho do Sol, em razão de sua linhagem real de pai e mãe. Atahualpa, aliás, era filho de uma concubina, não da Coya, a rainha.
Igualmente, nunca foi completamente esclarecido o mistério do sumiço das tropas de Atahualpa, que, segundo Felipillo dissera, estariam se concentrando para nos atacar. De fato, Pizarro sempre recebera informações de que guerreiros quitenhos eram avistados nas proximidades de Cajamarca, mas nunca chegamos a ser atacados.
Os erros de Atahualpa
Nem mesmo as patrulhas de reconhecimento ou o grupo comandado por Hernando Pizarro, que retirara todo o ouro do templo de Pachacámac, no litoral, sofreram qualquer ameaça. Aparentemente Atahualpa cometera um erro ao convocar a Cajamarca o comandante de suas tropas, Calcuchímac. Este acabou aprisionado e torturado por Hernando Pizarro, para que confessasse onde estaria o tesouro de Huáscar. Assim, igualmente, os soldados ficaram sem ninguém para lidera-los.
Dessa forma, como seu exército ficara sem chefe, muitos teriam retornado a Cusco. Na capital se integraram às forças de Quisquis, outro comandante militar de Atahualpa. Outros simplesmente desertaram e voltaram para Quito. Também é possível que os quitenhos temessem se aproximar e colocar em risco a vida de Atahualpa. Mas, agora que o Inca estava morto, por que não atacavam? Por não terem ninguém capaz de comandá-los?
O fato é que Atahualpa fora executado e as tais tropas não apareciam. É muito possível, portanto, que Filipilo tivesse propositalmente inventado esses boatos para conseguir a execução de Atahualpa. Em suma, os guerreiros avistados por nossos soldados talvez fossem simplesmente desertores a caminho de Quito. Ou estariam nos esperando, emboscados, esperando o momento de nos atacar?
Produzindo mestiços
Em Cajamarca, a execução do monarca quitenho causou alegria, não apenas entre tallans, aliás. Mas também entre os quéchuas, que nos viam como libertadores, mostrando-se gratos. Tentavam assim nos agradar de diferentes formas. Ou seja, ora nos oferecendo ótima comida, ora nos ofertando suas índias, mesmo que fossem suas irmãs. Finalmente, frei Valverde os colocou para correr:
– Que pouca vergonha é essa de oferecer suas próprias irmãs aos soldados? Bando de pagãos depravados!Um soldado, que bebia sua chicha riu.
– Acho que já fiz dezenas de crianças. Estava fazendo as contas, disse um soldado. Outro caçoou:
– Não é de toda foda que sai bebê.
Enfim, havia de fato um certo número de índias grávidas entre as que acompanhavam as tropas. Eu já tinha reparado os ventres inchados de muitas delas.
Papos juntos à fogueira
Costumávamos conversar junto a uma fogueira para espantar o frio. Muitos soldados que haviam chegado com Almagro trouxeram garrafas de rum do Panamá. Assim, a bebida corria a roda. Nós as obtivemos com os soldados das tropas que se juntaram a nós no Peru. Nós, com muito ouro éramos os ricos. Os recém chegados eram os pobres que negociavam até o próprio chapéu por uma moeda de ouro.
Fiquei um instante calado, olhando o crepitar do fogo no interior da casa, protegido por pedras. Obserevando as fagulhas no ar pensava no país que estávamos criando com essas índias. Ou seja, produzindo mestiços estávamos mudando a cara do povo daquela terra. Talvez eu e provavelmente António Ortiz fôssemos os únicos daqueles soldados a pensar nisso.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: As táticas de Pizarro e dos incas
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