A indiazinha
Uma mucama índia nicaraguense de uns catorze anos, capturada na Nicarágua e comprada pelo reverendo Fernando de Luque, cozinhava para nós, e para nossos intérpretes. Foi, digamos assim, “emprestada” a nós. Ou seja, a mocinha cuidava igualmente da nossa casinha casa de teto de palha e chão de terra, que dividíamos com os nossos intérpretes.
Um cômodo foi assim reservado para os indígenas tallans a quem ensinávamos espanhol. A moça por seu lado, dormia, numa esteira no chão numa salinha onde comíamos. Em outro aposento, com camas rústicas ficávamos Pablo e eu. Boa parte do tempo eu ficava igualmente conversando com meus botões ou cochilando deitado numa rede no fundo dos terrenos, sob o coqueiral.
Tem as índias…
A indiazinha passava a maior parte de seu tempo na cozinha, cozinhando. Soldados espanhóis que chegavam à colônia nos perguntavam como homens solteiros como nós suportavam ficar tanto tempo sem mulheres. Aliás, só uns poucos nobres e espanhóis mais importantes tinham alguma branca para servi-los. Foi Pablo quem respondeu:
– Tem as índias… E de todas as idades!
De fato, a primeira coisa que meu primo fez quando se viu sozinho com a jovem certa noite foi forçá-la. Ou seja jogando-se no estrado em que ela dormia e puxando-a para si. Eu estivera fora, bebendo no barraco de uns marinheiros. Em suma, seguindo, assim, as ordens de Almagro, de em primeiro lugar, procurar interessados em participar da nova expedição. Só voltei para casa perto de meia-noite, sob o luar.
Gritos abafados
Ao me aproximar da janela, de volta para nossa casinha, ouvi assim gritos abafados. Parei e escutei em silêncio. Logo espiei por uma fresta. A menina se debatia. Logo ouvi o barulho de um tapa. A garota parou de gritar. Depois, foram só gemidos chorosos e o arfar de Pablo, rápido em obter seu prazer. Eu também já olhara com cobiça para a indiazinha. Mas hesitara: ter que obrigá-la a fazer sexo me desestimulava.
Às vezes eu a olhava de costas, com sua cabeleira que chegava ao meio das costas, enquanto ela limpava uma galinha para nosso almoço. Surpreendia-me, entretanto, pensar que nenhum soldado ou marinheiro da colônia tivesse abusado da garota. Aparentemente, entretanto, ela era virgem. Como tinha certeza de que Pablo, mais cedo ou mais tarde, se ocuparia da índia, deixei-o fazê-lo. Esperei do lado de fora da palhoça. Espiei pelo buraco da fechadura. Pablo, falava ameaçador com a menina:
Só para ele?
– Você vai ter que fazer isso quando eu quiser. Arrebento essa cara chata de índia se começar a se debater a cada vez que vou te foder.
Deu uma risada alta:
– Você me deu trabalho… Você é para mim, só para mim. Acho que entendeu.
Percebi que meu primo saíra do cômodo sem porta e foi para a sala onde comíamos. Continuei, assim, acompanhando seus movimentos pelo burado da fechadura. Notei logo o clarão de uma vela. Entrei.
– Fodeu a índia, né?
Encarou-me com um sorriso depravado:
– Sim. Não era para fazer isso? Só tenho medo que ela conte para o padre Luque. Foi ele quem nos arrumou a moça…
– É, pode realmente dar encrenca – falei, sem acreditar no que dizia. Mas, não precisava dar um tapa nela. Pega, fode, mas não bate… Afinal, para que isso?
– Ela começou a resistir...
Costume corrente
Eu sabia que meu primo era como a maioria dos soldados espanhóis. Afinal, muitos agiam assim. Aliás, comentava-se que o padre Luque fazia, aliás, vista grossa para os pecados da carne. Pegar as índias à força era, portanto, corrente nas colônias espanholas. Aliás, também nas lusitanas, como fiquei sabendo ao conversar com um marinheiro português que encontrei no Panamá.
– Lá também é assim, me disse o lusitano, referindo-se à Igreja e às autoridades da colônia. – Fazer filhos nas índias ajuda a criar uma população cristã nos territórios conquistados. Além disso, as moças abusadas não são damas, nem cristãs, mas simples índias do mato. O que fazemos não é, portanto, exatamente um pecado.
Era, afinal, pensamento da Igreja que os pequenos mestiços, batizados, seriam, portanto, cristãos de verdade, mais confiáveis e novos súditos do rei. Os índios adultos, aliás, quase sempre só aceitavam a conversão por medo.
Punição: rezar aves-marias…
Eu não acreditava, portanto, que Pablo pudesse sofrer punição. No máximo, padre Luque lhe daria uma advertência e o mandaria rezar algumas Ave-Marias como penitência. Mas, preferi, entretanto, não lhe falar nadaa Pablo sobre o que pensava, já que a pequena nativa também me interessava.
– Aceito dividir o risco com você e também ficar com a moça.
Tomou um gole de vinho, ergueu os olhos para mim.
– Fui eu quem abri caminho…
Encarei-o, irritado.
– Escute aqui: em primeiro lugar, você só está bem alojado porque eu convenci Pizarro a deixá-lo comigo, tomando conta dos intérpretes. Senão, estaria dormindo no galpão em meio aos soldados e carregando madeira nas costas lá no estaleiro. Além disso, se o padre Luque nos perguntar algo, caso a indiazinha vá reclamar, é igualmente mais provável que ele acredite em mim do que em você.
Chegando em um acordo
Pablo tinha certo medo de mim. Respeitava-me por saber mais do que ele, por ser mais esperto, mais velho e, principalmente, mais forte. Em suma, sou musculoso e alto; ele, baixinho, gordo e de movimentos lentos. Assim, engoliu seu vinho em silêncio, não se arriscando a me encarar. Segurei no seu braço:
– Você não tem nada a perder.
Foi somente uns dias depois que me deitei com nossa mucama. Pablo já estivera com ela outras vezes. Creio que a jovem, sem escolha, se resignara. Encolhia-se assustada, mas deixava-se usar. Não era só ela. Muitos colonos negociavam as escravas. As nativas, aliás, raramente negavam seus favores aos novos senhores, sabendo, talvez, que não adiantava nada recusar. Ou seja, era o costume.
A espera no Panamá oferecia vantagens. Tínhamos índias, comida e bebida. Quando podíamos, nos embriagávamos com um rum vagabundo. Por outro lado, nos impacientávamos. Tanto ouro à nossa espera e nós imobilizados naquele calorão horrível, deixando, meio bêbados, a vida passar.
Felipillo etc
Nossos intérpretes, Miguel, José e Felipillo conseguiam aos poucos, cada vez mais dominar o espanhol. Mais de uma vez dei graças aos céus por ter sido encarregado de ensinar espanhol aos nativos capturados. Procurei tratá-los bem. Em nenhum momento eu os destratei. Acreditei que conseguiria muito mais deles por bem. Podia tentar fazê-los falar à força. Confesso que cheguei a pensar nessa possibilidade e em pedir ajuda ao padre Fernando de Luque. Embora a Inquisição não tivesse ainda chegado ao Panamá, ele conhecia inquisidores capazes de obter confissões detalhadas de qualquer um.
Até os mais resistentes acabavam reconhecendo terem sido cooptados por Satanás, que faziam bruxarias ou conservavam suas práticas judaicas. Confessavam, enfim, o que os inquisidores quisessem.
Mas, com os selvagens, eu achava que não daria certo. Ou seja, se torturados, mentiriam e diriam apenas o que quiséssemos ouvir. Não era isso, entretanto, que eu desejava. Queria a verdade.
Achava que podia começar com o aprendizado da língua. À medida que entendessem melhor o espanhol, iriam naturalmente, talvez até sem perceber, nos pssar mais informações. Odiando-nos, teriam mais razões de tentar nos enganar.
Nossa imagem
Aliás, nesse ponto, padre Luque já nos orientara para procurar passar uma boa imagem dos cristãos aos índios. Ou seja, por isso mesmo, foi péssimo termos forçado a indiazinha. Pablo, vendo como o olharam quando a desvirginou, tentou remediar, dizendo que a mocinha era uma puta. Mas foi pior, pois confundiu os índios. Como eu viria a saber mais tarde, prostitutas não existiam entre eles. Foi, portanto, difícil recuperar nossa imagem após esse episódio. Felizmente, a pequena nicaraguense não falava a língua daqueles que preparávamos para nos servir de intérpretes. Ainda mais, por sorte, a garota parou de fazer escândalos e continuou, dócil, a cozinhar para nós e, à noite, a nos servir de outras formas. Isso aparentemente os tranquilizou.
Para melhorar o clima, comecei igualmente a presentear a indiazinha com algo que ela não conhecia de adorou: rapadura. Notei inclusive que não apenas ela se mostrava contente, como também nossos intépretes sorriam, aprovando.
Para que serve o ouro?
Foi, entretanto, impossível esconder por muito tempo aos nossos intérpretes o interesse pelo ouro. Enfim, os indígenas não entendiam por que esse metal era tão importante para nós. Disse-lhes o que, segundo me falaram, Cortez contara aos nativos no México. Ou seja, nós, espanhóis, sofríamos de uma doença rara que somente o ouro poderia curar.
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: A catequização dos intérpretes
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