A conquista consolidada: criar uma cidade espanhola
A conquista consolidada. Participei dos trabalhos destinados a criar uma cidade espanhola no altiplano. Ortiz, porém não tinha a mesma disposição em destruir a arquitetura inca. Aliás, sabendo que seria uma atitude prudente, praticamente intimei Ortiz a participar:
– Os dominicanos vão começar a reparar em você, homem. Não precisa, aliás, fazer força: é só mandar os índios trabalharem. Saiba, porém que me dá pena derrubar esses belos templos, mesmo que sejam pagãos.
Auxiliados pelos nativos, vimos, assim, os templos serem postos abaixo. Enfim, boa parte das paredes inca foram aproveitadas na construção de palácios e igrejas. Sobre os muros incas incas construíram, porém paredes de alvenaria espanhola. Isso foi fácil. O impossível, entretanto, foi reerguer paredes tão perfeitas ao aproveitar o material para nossas igrejas.
As construções incas
Até mesmo um homem que já trabalhara em construção de catedrais na Espanha e, por isso, fora escolhido para dirigir os trabalhos, olhava para aquelas pedras sem entender como faziam para encaixar tão bem umas nas outras. Por fim, desistiu e as utilizou, conseguindo erguer uma parede tosca. Ou seja, que nem de longe se comparava às construídas pelos incas. Quando os padres se afastaram, Ortiz resmungou:
– Não sei por que esses curas não aproveitaram as construções. Afinal, elas eram boas. Bastaria, em suma, construir um altar cristão dentro de cada uma. Os índios, enfim, dizem que esta é uma terra de terremoto, e suas construções parecem mais resistentes do que as nossas. Repare, aliás, a perfeição dos encaixas entre as pedras.
Passeios pelo Vale
Certas tardes, quando não tínhamos nada para faze. Assim, íamos encontrar Achachíc e o convidávamos, a caminhar conosco pelo vale. O inca era, aliás, muito inteligente. Ficamos, aliás, bastante surpresos com a rapidez com que aprendeu espanhol. Ou seja, compreendia tudo melhor do que José, que estava conosco desde o Panamá. Via-se, portanto, que tivera mais estudo do que o tallan. (N.A.: No terremoto que atingiu Cusco em 1950, construções erigidas pelos padres desabaram, enquanto muros incas remanescentes resistiram aos abalos).
A Yachayhuasi, ou Casa do Saber
Achachic contou-me que, como filho de nobre, frequentara a Yachayhuasi, ou Casa do Saber, onde todos recebiam uma boa educação. Aprendiam, portanto, história e geografia do império, artes militares, religião, gramática, direito, esportes e moral. Ou seja, mais do que eu pude aprender com os padres! Porém, aprendi a escrever, enquanto eles, ao que parece, não tinham entretanto uma escrita. Os ensinamentos eram portanto decorados em forma de versos repetidos seguidamente pelos “alunos” .
Os jovens nobres eram, dessa forma, preparados para, quando adultos, participarem da administração e serem servidores fiéis do império. Assim, desde crianças deviam igualmente ter noção de honra pessoal e de responsabilidade.
Achachíc contou-nos que os nobres tinham, entretanto, uma casa melhor e igualmente mais gado e mais terras. Porém, eram punidos com severidade à menor falta. Afinal, como membros da aristocracia, deveriam portanto, servir de exemplo de boa conduta. Sorri ao lembrar que os nobres na Espanha eram os que menos se conduziam de forma decente.
A nobreza inca
Pelo que entendemos, os incas possuíam, aliás, dois tipos de nobreza. Muitos nasciam nobres, como Achachíc, e pertenciam à panaca real. Obtinham assim, sempre os melhores postos no exército e na administração do reino. Outros aristocratas, menos importantes que os primeiros, eram chefes de tribos submetidas ou igualmente pessoas recompensadas pelo Inca.
Achachíc também nos falou de uma poderosa casta de sábios conhecidos como amautas.
– São tão poderosos quanto os nobres e guardam consigo todo o conhecimento do império. Mesmo o Inca os consulta. Enfim, posteriormente os amautas acabaram perseguidos pela Igreja, que temia que difundissem heresias pagãs. Os amautas foram, portanto, exterminados a mando dos religiosos. Com seu fim, desssa forma, quase todo conhecimento inca se perdeu.
O hata runa
O povo comum era chamado de hatun runa. Ou seja, o trabalho físico era reservado a eles. Podiam tecer, plantar ou fazer qualquer trabalho físico – porém acabavam sendo encaminhados para o ofício que desempenhavam melhor. Só podiam ter uma esposa e não aprendiam nada além de seus ofícios tradicionais.
– Estão destinados a funções braçais, não precisam de muita sabedoria, explicou Achachíc.
Aravam a terra, não tinham estudo. Aprendiam portanto seu trabalho com os pais ou com outros de sua aldeia. As meninas aprendiam a tecer, a cozinhar e a executar outras tarefas. Essa gente, a maior parte da população do império, aliás, habitava os ayllus.
A agricultura inca dos ayllus
Enfim, todos tinham terras para cultivar, porém não podiam vendê-las nem arrendá-las. Assim, cabia a cada um cuidar da área que lhe fosse destinada. Aqueles, porém, que, tendo recebido terras, não se ocupassem delas direito, eram punidos. Parte da produção de cada um abastecia seu ayllu e igualmente sua família. Outra parte da produção, porém, era encaminhada aos depósitos do império. Dessa forma, servia de reserva para os anos de colheita insuficiente. Plantavam milho; quínua, um cereal comum por lá; e batata, a base de sua alimentação. A carne, consumida principalmente pelos nobres, era de lhama e alpaca. O povo comum, entretanto, comia patos, outras aves e porquinhos-da-índia. Não conheciam, porém, a vaca, a galinha, o leite, o queijo, nem trigo e outros cereais comuns na Europa..
Os artesões, oleiros, tecelões
Nem toda gente do povo era camponesa. Assim, muitos eram também ourives, oleiros, artesãos ou tecelões. O reino era, portanto, organizado de modo que ninguém ficasse ocioso.
Ao contrário do que ocorria na Espanha, os governantes no Império Inca, porém, interferiam em tudo: no trabalho das pessoas, no casamento e até decidiam onde cada um deveria morar.
O imperador: senhor supremo
Pelo que pude perceber, todo mundo obedecia aos seus senhores em tudo. O Inca, que mandava em todos os curacas do império, era considerado filho do sol, em suma, uma espécie de “pai de todos”, chefe supremo. Não existia portanto, lei acima dele. Ou seja, se o Inca achava que alguém devia ser punido com a morte, o pobre diabo era executado de forma cruel, e pronto.
Igualmente, sempre tive grande curiosidade de saber como, sem instrumentos de ferro, conseguiam cortar as pedras com tanta perfeição e erguiam paredes com blocos pesadíssimos.
Achachíc mostrou-se orgulhoso das realizações de seu povo e explicou-me algumas das técnicas utilizadas no corte das pedras. Ou seja, localizar exatamente os veios de cada uma para poder quebrá-las. Outro sistema era cavar uma linha de buracos com instrumentos de bronze e neles introduzir uma cunha de madeira seca. Depois molhavam a madeira com água, fazendo com que se expandisse, partindo, dessa forma, as pedras.
Primeiros mestiços
Ficamos um momento em silêncio, até que Achachíc disse:
– Observem bem para esse mundo inca, aprendam sobre ele… Tudo o que estou contando sobre os quéchuas em breve não será mais verdade. Tudo isso vai desaparecer. Nunca mais será como antes.
– Desaparecer por quê?
Ele olhou-me longamente nos olhos e disse:
– Não sabe por quê?
Nos entreolhamos. Acho que sabíamos: destruímos o mundo deles.
Nossos bebê mestiços
Uma tarde, depois de uma viagem de inspeção comandada por Gonzalo pelo Vale de Jauja, recebemos novidades de Cusco.Ou seja, um dominicano escrevera avisando que Ortiz era pai de uma indiazinha. Segurei-o pelos ombros: – Homem! Você é pai! Está ajudando a povoar este país devastado. Ele pareceu feliz:
– Estou curioso em vê-la. Como será seu rosto? Nunca pensei que me tornaria pai de uma menina deste lado do mundo.
Calculei que Nitaya também devia logo dar à luz nossa criança.
Pedro de Alvarado
Pizarro pôde, após a fundação cristã de Cusco, ocupar-se de Jauja e organizar a distribuição de terras. Mas, seu sossego demorou pouco. Logo chegavam más notícias. Alvarado desembarcara ao norte do Peru e avançava para Quito. Enquanto isso seus navios rondavam o litoral peruano.
Logo, algum tempo depois, Pizarro recebeu correspondência do Conselho das Índias. Pelo teor ele percebeu que fora despachada antes da notícia da captura de Atahualpa e da chegada à Espanha do ouro destinado ao rei. Ainda sem nenhum resultado a ser comemorado, várias de suas petições foram assim ignoradas.
Uma das cédulas reais, porém, lhe foi favorável e era de extrema importância: em suma, proibia Pedro de Alvarado de competir com Pizarro na conquista do Peru.
Uma noite, Gonzalo apareceu na casinha em que eu estava com José, Ortiz e Achachíc comendo um porquinho-da-índia junto do fogão de lenha e nos conduziu até Pizarro. Este nos ordenou que levássemos a cédula real a Almagro, no litoral.
Mensagem para Alvarado
Devíamos avisá-lo para que seguisse rapidamente com seus homens para Quito encontrar Alvarado, apresentar-lhe o documento real. Impedi-lo, dessa forma, de continuar qualquer tentativa de conquista ao sul.
Enquanto nos aprontávamos para a viagem, outro mensageiro, Juan de Quincoces, era enviado a Cusco, avisando os vecinos sobre Alvarado. Também os alertavam sobre como se conduzirem com os nativos. Os vecinos eram homens de Pizarro recompensados com terras e índios para nelas trabalharem. Porém, ambiciosos ao extremo, extorquiam os nativos, exigindo-lhes que lhes entregassem ouro e prata. Ora, com Pedro de Alvarado ao norte lhe causando problemas, tudo o que o Gobernador não queria era ter que enfrentar no sul uma revolta dos quéchuas. Em suma, algo que poderia se passar se os espanhóis estabelecidos na cidade não moderassem portanto suas ambições.
A cobiça dos primeiros colonos
Mas Juan de Quincoces não teve sequer o apoio do Cabildo, e pouco, portanto, foi feito para controlar a cobiça dos colonos. Pizarro teve, dessa forma, que enviar nova mensagem, dessa vez ameaçando Beltrán de Castro, que administrava a cidade. Intimou-o a devolver o ouro e a prata aos índios e a libertar o principal sacerdote quéchua, Villacoma, mantido prisioneiro. Daquela vez os encomienderos assustaram-se. Porém, no lugar de devolver aos índios o que fora extorquido, enviaram os metais preciosos para Pizarro, que acabou se servindo deles para pagar uma parcela atrasada do quinto real. Os nativos, entretanto, nunca foram ressarcidos.
Conhecendo nossas crianças
A caminho do litoral pudemos parar em Cusco e conhecer nossas crianças. Meu coração batia acelerado enquanto subíamos a ladeira rumo à casa que ocupávamos. Creio que o mesmo acontecia com Ortiz, porque cavalgávamos apressados e em silêncio. Ao chegar encontramos as duas índias deitadas numa esteira no chão da cozinha, amamentando os bebês. Paramos um momento, nos inclinando cada qual sobre sua companheira. Nitaya virou a criança e afastou-a do peito para mostrá-la para mim. O bebê desatou a chorar. Eu quase não conseguia reconhecer nele meus traços espanhóis, a não ser pelas maçãs do rosto, menos altas e salientes do que as dos nativos.
A filha de Ortiz, por sua vez, era também uma indiazinha. Meu amigo suspirou meio desapontado:
– Dizem que quase sempre essas crianças têm mais traços índios do que espanhóis. – E acrescentou:
– Sempre escutei as pessoas, ao verem bebês, dizerem que parecem com o pai ou com a mãe. Para mim, pelo menos logo que nascem não se assemelham a nada…
Conversas com Almagro
Foi muito bom voltar a Cusco, mas pudemos ficar apenas um dia com Nataya e Ñusta. Pizarro nos recomendara pressa. Quando nos encontramos com Almagro, este, com a ajuda de Soto, se empenhava em combater as tropas de Quisquis. O chefe quitenho, aliás, atacava os espanhois em momentos inesperados. Apesar de suas enormes perdas os incas insistiam em seus ataques supresa.
O Adelantado examinou novamente a correspondência real, preocupado.
– Pedro de Alvarado é de uma família poderosa na Espanha… Mas, enfim, esta é uma ordem real, e ele será obrigado a acatá-la. Virou-se para um de seus capitães:
– Diga à tropa para se preparar. Partimos amanhã. – Depois nos mandou descansar.
Espanhol contra espanhol
– Agora é espanhol contra espanhol, comentou Ortiz quando nos instalamos em uma casinha de adobe.
– Triste, não? Os dois lados tem cavalos e armas de fogo…
Vários dias depois nos unimos às tropas de Belalcázar e ficamos acampados à espera de Pedro de Alvarado. Após atravessar florestas úmidas, serras geladas e ataques de nativos, nos quais perdera muitos homens e passara momentos difíceis, ele teve uma ingrata surpresa ao nos encontrar.
– Daria uma moeda de ouro para ver sua cara! – comentou Toledo.
Frente a frente com Alvarado
De nosso acampamento avistávamos as tendas dos homens de Pedro de Alvarado um quarto de légua à frente. Sentei-me com Ortiz e outros soldados sobre um tronco caído. Era muita falta de sorte termos lutado tanto e agora ver outros tentando tirar proveito de nossa conquista.
– Esse Alvarado é um filho da puta. Chegamos aqui antes dele – disse um dos soldados.
Ortiz ergueu os ombros:
– É como todo mundo… Quer ouro. É o que importa para nós, não?
Tive de concordar com ele:
– Parece que sim… Mas o que é nosso ele não leva.
Os dois exércitos se observaram de longe
Os dois exércitos se observaram de longe, nenhum deles, entretanto, resolvido a atacar seu rival. Calamo-nos para ver passar um emissário de Almagro que partia a galope, levantando uma pequena nuvem de poeira. Desde o dia anterior mensageiros iam e vinham entre os campos adversários. Daquela vez, após formalizarem um acordo de paz, ficou assim combinado que Almagro e Belalcázar se encontrariam com Pedro de Alvarado a igual distância dos dois acampamentos. Enfim, prudência nunca é demais…
A rivalidade entre os espanhois
Foi quando os três, vestidos com armaduras reluzentes, se encontraram e deram afinal início a conversações, que iriam tomar três dias. Enquanto os chefes conversavam, José me chamou. Disse que ouvira boatos de que Felipillo partira para o acampamento de Alvarado para incitá-los a nos atacar. Pior: segundo José nos contara, seu plano era deixar os dois grupos de espanhóis lutarem entre si. Ou seja depois mandaria os índios quitenhos nos atacar. Para sua sorte, porém, Almagro, envolvido nas conversações com Pedro de Alvarado, não teve tempo de investigar as acusações.
Chegando a um acordo
Soube que a cédula real acabou pesando muito nas negociações. Finalmente, Almagro, com o apoio de Belalcázar conseguiu um acordo. Em suma, compraria, por cem mil castelhanos de ouro, navios, armas e cavalos de Alvarado, e engajaria seus soldados no exército colonial de Pizarro. Enfim, evitou dessa forma o derramamento de sangue entre as duas facções. Firmado o acordo, Almagro seguiu com Pedro de Alvarado para encontrar Francisco Pizarro em Pachacámac. Pachacámac era, aliás, onde ficava o templo saqueado por Hernando quando Atahualpa era prisioneiro em Cajamarca. Pizarro, apesar de ter seu tesouro esvaziado, ficou feliz: reforçou suas tropas com centenas de homens, ganhou uma pequena frota de navios, canhões e, igualmente, se livrou de Pedro de Alvarado. Afinal, ouro ainda havia muito a ser saqueado.
Nós fomos portanto, liberados para voltar para Cusco. Assim, ficarmos com nossas companheiras e as crianças. Estas estavam maiores e era assim possível reconhecer melhor suas feições. Em suma, tinham olhos amendoados. Pareciam portanto mais com as mães, mas via-se que eram mestiços. Afinal, ambas as crianças tinham pele mais claras do que as crianças índias que conhecíamos.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
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