De frente para cinquenta mil guerreiros
Atahualpa com cerca de cinquenta mil guerreiros nos aguardava. A próxima cidade aonde chegamos fora também parcialmente destruída por suas tropas. Logo que entramos no povoado o cacique logo nos avisou que o soberano inca reunira um exército de 50 mil homens em Cajamarca. Pizarro, a princípio, não acreditou.
– Não deve estar sabendo contar. Não é possível!
Por meio de desenhos riscados no solo, que lhe permitiram assim calcular quantidades com perfeição, o curaca mostrou, porém, a Pizarro como os guerreiros incas eram numerosos.
Aliás, o índio, que tanto temia como odiava Atahualpa, disse também que as tropas de Quito mataram dois em cada três habitantes do vale.
Vou morrer ?
Se subíssemos a serra, seríamos massacrados? Logo senti uma gota de suor frio escorrendo pela espinha. Lembrei-me, assim do que dissera a meu pai: Não irei morrer. Já não tinha, porém, tanta certeza. Aliás, minha maior preocupação – e a de muitos outros soldados – já não era tão somente o risco de morte. Mas, como ela se passaria. Lembro-me de Álvaro falando em voz baixa, sério:
– Se eu tiver que deixar esta vida nas mãos dos incas, que seja, enfim, da forma menos sofrida.
– Caso eu vá morrer aqui – disse outro soldado –, que seja morte rápida. Ou seja, que eu receba uma flecha no coração. O Gobernador, que escutara, franziu a testa, bravo:
– Calem a boca! Ninguém, aliás, vai morrer. Só os covardes morrem antes da hora.
Muito medo
Quando saímos da reunião, meu primo e eu nos entreolhamos. Não vou, aliás, iludir ninguém. Ambos tínhamos medo, muito medo. E, ainda mais, quando nos lembrávamos dos cadáveres sem pele amarrados nas estacas. Porém, não era possível recuar. Antes de irmos dormir, Pablo me pediu, se ele morresse e eu sobrevivesse, para avisar sua mãe e seu pai. Pedi-lhe, assim, o mesmo. Ele, que agora dividia uma casinha com o galego Carlos e com o madrilenho Álvaro de Toledo, foi dormir.
– Se você for morto, e eu não, você me deixa sua índia? – perguntou afastando-se. Tive vontade de esgana-lo:
– Vá para o diabo!
Era lua cheia, uma noite muito bonita. Fiquei um bom tempo olhando para o céu, tentando dessa forma tranquilizar minha cabeça. Não consegui, porém, deixar de me preocupar. E se os plano de Pizarro de agarrar o Inca, não desse certo? Estariam os índios de Atahualpa protegidos pelos astros? Por ser deles esse céu prateado e nós apenas pessoas estranhas de outras terras?
Tereza
Lembrei-me mais uma vez de Teresa. Nossas famílias esperavam nos ver casados, ela igualmente – e acho que eu também. Minha andaluza bonita, de olhos cor de azeitona, lábios sensuais e sorriso sedutor… Poderia certamente ter me casado com ela, mas preferi, porém, a aventura deste lado do oceano. Lembrei-me, assim, de nossa despedida e também no quanto ela ficara furiosa ao saber de minha decisão. Eu disse que voltaria rico em pouco tempo. Mas, cinco anos se passaram e eu continuava pobre. E, ainda mais, a milhares de léguas da Espanha. Recebi raras cartas de casa. Cada uma, aliás, demorava meses para chegar às minhas mãos. Perguntei sobre Teresa em uma das vezes que escrevi a meu pai; minha mãe não sabia ler. Ele, porém, nunca me respondeu. Talvez essa fosse sua forma de responder.
Falando com Deus
Caminhei até a beira de um riacho próximo e me ajoelhei.
– “Deus Pai… Deus Pai…” Ergui os olhos para o céu e chorei. “Talvez eu morra… Só o Senhor sabe por que vim para essas terras do Pirú… Não quero me casar para ter com minha mulher filhos de pobre… Ter uma vida de tanto trabalho como meu pai e continuar sendo um homem humilde.”
Uma estrela cadente… um sinal divino?
Nesse momento o rastro breve e luminoso de uma estrela cadente riscou o céu. Senti, assim, que Nosso Senhor me compreendia. Eu já vira muitas estrelas cadentes. Não atribuíra, porém, mensagem divina a nenhuma delas. Agora, porém, eu falava com Deus e senti que aquela fora Sua resposta.
Ao longe, vi luzinhas acesas. Talvez na choupana de Pizarro, um homem que dormia pouco. Devia certamente, estar discutindo com Martin, o irmão com quem melhor se entendia, por serem da mesma faixa de idade. À esquerda, havia igualmente outra fraca luminosidade, sinal de vida de uma cabana. Era possível ainda que um dominicano estivesse escrevendo ou conversando com outro frei à luz de uma vela.
Gente ímpia
Olhei de novo para o céu. Eu viera parar num país completamente diverso do meu. Já vira pinturas de outras nações da Europa. Eram, entretanto, países que tinham muita semelhança com a Espanha. Mas o Peru, não. Era como se fosse assim outro mundo. Tinham ouro, riquezas e seu povo era diferente de nós, espanhóis. Ou seja, nunca ouviram falar em Nosso Senhor, na Virgem Maria. Se Jesus não aparecera para eles era, portanto, porque não quisera ou essa gente não merecia.
Afinal, era gente ímpia, cruel. José me contara que esposas e servidores do Inca e dos nobres eram, muitas vezes, enterrados vivos com eles. A esposa principal do Inca era, ainda mais, sua irmã de sangue, bem como o era a maioria de suas concubinas. Casamento entre irmãos! O incesto! O sacrilégio dos sacrilégios !
Sacrifícios humanos
Além disso, os incas igualmente sacrificavam pessoas a seus deuses. Geralmente eram meninas de origem nobre. E os pais, ainda mais, se sentiam honrados em ter a filha escolhida para ser sacrificada no alto de uma montanha. Tudo isso era, portanto, inaceitável para um cristão. Seria, aliás, possível que, como dizia frei Valverde, nós, espanhóis, tivéssemos sido incumbidos por Cristo de punir essa gente ímpia? Ou seja, como fizemos com mouros e hebreus? Trazê-los para a fé cristã ou, se não a aceitassem, acabar com esse mundo pagão de misérias?
Em busca de uma resposta
Olhei mais uma vez para o céu, tentando encontrar uma resposta Dele a meus pensamentos. Dessa vez, entretanto, uns minutos se passaram até eu avistar outra estrela cadente. Enfim, talvez porque Deus estivesse pensando sobre o que eu Lhe dizia. Uma resposta ainda mais clara veio em forma de outro forte risco luminoso nos céus. Não sei se a estrela me protegeria contra as flechas desses índios, mas, me apontava o caminho.
Iríamos enfrentar Atahaualpa e seus cinquenta mil guerreiros. Se morresse, iria certamente para junto de Deus. Se vivesse e ficasse rico, seria, portanto, a vontade Dele. Pedi Sua bênção e fechei os olhos por um instante. Depois os abri, esperando resposta. Deus devia estar estudando o que sabia sobre mim, sobre os meus pecados. Ou seja, tomar ouro e mulheres de pagãos era pecado? Se fosse, não devia ser grave. Afinal, nas guerras, inclusive as travadas entre cristãos, os soldados sempre o faziam.
E mesmo assim Deus nos conduzira à vitória sob a bandeira de Castela. Dessa vez Nosso Senhor demorou a responder. Pareceu-me ter visto um traço de luz no céu, mas não tive certeza. Ele veio, porém, bem nítido minutos depois. Uma visível estrela cadente. Assim, de olhos cerrados, agradeci. Quando me levantei da relva, sentia-me confiante. Era vencer ou morrer por Deus e pela Espanha.
Retomando as trilhas incas
Logo, mais tranquilo, fui para a cabana encontrar-me com Nitaya.
Na manhã seguinte, ensolarada e ventosa, partimos para uma aldeia chamada Cinto. Tivemos, entretanto, outra vez, que cruzar um rio, dessa vez com a água pela cintura. Prosseguimos pela estrada inca até a serra, onde ela se bifurcava. À nossa frente, a trilha se encontrava com a montanha, parcialmente encoberta por uma pesada camada de nuvens. Não se podia, portanto ver se a estrada contornava a colina ou se continuava em direção ao topo. Engajarmo-nos pelo caminho mais direto equivalia assim a marchar diretamente ao encontro de Atahualpa e seus cinquenta mil guerreiros.
Cinto
Logo que chegamos a Cinto Pizarro logo reuniu seus principais veteranos numa cabana abandonada. Alguns preferiam pegar a estrada para o sul e analisar melhor a situação antes de prosseguir. Hernando, porém, um dos mais resolutos, discordou, com sua voz de trovão, apoiado por Soto.
– Esse reizinho de merda vai pensar que somos cagões!
Senti um mau cheiro no ar. Alguém devia estar com dificuldade em controlar seu medo e suas tripas. Olhei de esguelha para meu primo.
Falando das mensagens divinas
Adiantei-me. Eu nunca falava, mas dessa vez resolvi contar, sem travas na língua, sobre meu encontro com Deus na noite anterior. Falei do sinal visível que me foi enviado por Deus: o rastro de fogo no céu. Quando terminei, um silêncio pesado tomou conta da choupana. Devo, sem querer, ter afetado a todos. Talvez tenha exagerado, mas senti que nosso taciturno Gobernador me aprovava. Frei Valverde também, pois colocou a mão em meu ombro e murmurou baixinho:
– Muito bem, meu filho.
Pizarro bateu com o punho na mesa.
– Quem é cristão e espanhol, fique conosco. Quem não crê na Espanha nem em Deus, saia desta cabana agora mesmo.
Ninguém, entretanto, mesmo que estivesse com medo, o fez. Saí portanto, contente da reunião. Meu prestígio aumentara; até mesmo o vaidoso e mal-humorado Hernando Pizarro me concedeu um breve olhar de admiração. Assim, apoiou a mão em meu ombro e, aproximando-se de minha orelha, falou:
– Carajo, niño…
Saña
Era 6 de novembro, uma quarta-feira. Pizarro nos fizera acordar cedo. Assim, mundo bocejava. Quando António Ortiz e eu acordamos, as índias já tinham assado espigas de milho. Também colheram frutas enos trouxeram copos de cerâmica com chicha. Olhamos um para o outro.
– Você tinha razão, amigo – disse-lhe com um sorriso. É certamente confortável ficar com as moças…
– Parece que estamos casados…
Afinal, a esta hora, os outros homens deviam ainda estar ainda catando lenha para acender o fogo no fogão da cabana. E depois, ainda mais, tinham que preparar sua refeição.
Prosseguimos, assim, satisfeitos, bem alimentados, na direção leste. Logo, cinco léguas adiante, chegamos ao povoado de Saña, às margens de um rio.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: Encontro com nossos medos
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