Pizarro e a execução de Atahualpa
Francisco Pizarro hesitou sobre a execução de Atahualpa. Aos poucos, porém, foi mudando de idéia. Afinal, cresciam os rumores de que cada vez mais guerreiros se reuniam para nos atacar. Seriam lanceiros, arqueiros e, igualmente, atiradores de funda, os que mais temíamos, aliás. Segundo dizia Filipilo, estariam, assim, se concentrando nas próximidades de Cajamarca. Finalmente, o Gobernador se convenceu. Mas, quis ouvir as diversas opiniões. Assim, convocou um conselho de guerra, que se arrastou noite adentro sob a luz de archotes.
O julgamento do Inca
Servidores de Atahualpa e de Huáscar foram igualmente interrogados. Não participei do julgamento, mas assisti à sessão do tribunal, criado de improviso para processar o Inca. Os depoimentos de frei Valverde e de Filipillo tiveram grande impacto entre os presentes. Afinal, as relações incestuosas do Inca com suas irmãs também não foram esquecidas, mesmo que isso fizesse parte da cultura deles.
–Deus não perdoa incesto! É pecado mortal, disse o religioso. Em suma, era algo inaceitável para um cristão deitar-se com as irmãs. Seria, aliás, preferível, que essas índias fossem entregues aos soldados. Afinal, não tinham nenhuma ligação de sangue com elas. Portanto, diante de Deus, não estariam assim cometendo nenhum pecado. Finalmente, frei Valverde aproveitou também para lembrar que Atahualpa atirara na poeira o livro santo, no dia em que fora capturado.
– Eu me lembro até hoje dessa cena! – O homem é o demônio em forma de gente.
Os argumentos pela execução
Filipillo, por sua vez, garantiu que Atahualpa buscava uma revanche sobre os espanhóis. Ou seja, pretendia exterminar a todos, ou quase. Só conservaria uns poucos para, castrados, para servirem, assim, de guardas de seus haréns. Ao ouvir isso muitos de nós arregalaram os olhos. Alguns comentaram, então, que o índio precisava mesmo morrer. Almagro e Belalcázar, compartilhando a opinião dos religiosos, apoiaram também a execução do monarca. Durante toda a sessão, Pizarro mais escutou do que falou. Ou seja, não pediu a cabeça do Inca, mas também não defendeu o prisioneiro. Preferiu, dessa forma, deixar a decisão ao tribunal.
O interrogatório de quitenhos capturados e igualmente o depoimento de nobres cusquenhos resultaram em outras revelações. Ou seja, que o acusado de fato matara Huáscar e outros de seus irmãos. Algo, aliás, que já desconfiávamos. A famosa caveira de um deles, na qual Atahualpa bebia chicha, passou de mão em mão como prova de seu crime. Alguns tremeram ao segurá-la.
– O homem é mesmo mau – balbuciou um dos soldados.
As setes e pedras perigosas
O Inca foi, portanto, condenado. Certamente que eu poderia ter expressado minhas dúvidas sobre a versão apresentada por Felipillo. Calei-me, porém. Afinal, me horrorizara com Atahualpa desde que vira aqueles guerreiros tallans mortos, amarrados em postes. Aliás solto, mais esperto dessa vez, ele não se deixaria aprisionar. Dispondo de milhares de guerreiros, acabaria por nos vencer.
Além disso, esses índios estavam também aprendendo algumas coisas nesses combates. Por exemplo, escolhiam melhor as armas para nos enfrentar. Iam percebendo, assim, que os lanceiros não tinham chances contra nossas espadas de ferro. Era, portanto, mais seguro atacar em massa os espanhois de longe com fundas ou arcos e flexa. Certamente, que temiam nossas armas de fogo, mas tínhamos que atirar muito longe para não sermos atigidos por milhares de setas e pedra.
A justiça real
Durante a madrugada mandaram-nos buscar Atahualpa em sua cela. Despertado, levantou-se, apertando os olhos. Ao ver o alcaide Juan de Porras – encarregado de aplicar a justiça real – acompanhado de um dominicano e de nosso grupo de soldados, logo desconfiou.
– O que querem?
Juan adiantou-se:
– O tribunal de Sua Majestade decidiu-se por sua execução pelo fogo.
O Inca deu um soco na parede, seu rosto ficou vermelho.
– Por que vão me matar? Por quê? Afinal, paguei quase todo o resgate!
Pediu para ver Pizarro, mas seu pedido foi recusado. Amanhecia quando o levaram para o centro da praça. Logo fizemos uma roda de cavaleiros e soldados à volta do poste no qual já havia lenha empilhada. Em nome da justiça real Atahualpa seria queimado.
Atahualpa indignado
O índio estava, entretanto, indignado.
– É uma conspiração! Eu nada fiz contra os espanhóis! São os partidários de Huáscar que estão espalhando boatos! Desesperado, e na dúvida se aquilo tudo não seria uma encenação, perguntou:
– Vão mesmo me matar? O que eu fiz?
Prometeu mais ouro, mas era tarde demais. Já amarrado ao poste, conscientizou-se de que não escaparia à execução.
O céu cristão
Assim, perguntou a frei Valverde para onde iam os cristãos quando morriam.
– Para o céu – respondeu o frei, sem titubear. Ou, pelo menos aqueles que se arrependeram de seus pecados, que se confessaram antes de morrer
– E nós?
– Os índios pagãos vão para o inferno – respondeu Valverde no mesmo tom.
Atahualpa pensou um instante. Depois encarou o religioso.
– Onde se enterram os cristãos?
– Em solo sagrado, da igreja.
– E os demais?
– Em qualquer mato – respondeu o frei, encarando-o.
– Vou também para o céu cristão?
Frei Valverde titubiou.
Afinal, Atahaulpa tinha pesadíssimos pecados nos ombros. Em suma, além de dormir com as irmãs, ele mandara assassinar o irmão, Huáscar, matara, torturara, fora extremamente cruel com os povos dominados pelo Império Inca. Suspirou:
– Tem mais chances…
Atahualpa abaixou a cabeça:
– Quero ser cristão.
O garrote vil
O frei olhou para Pizarro, coçou a cabeça e mandou desamarrar o índio. Não se deixa, aliás, de aceitar uma conversão. É sempre mais uma alma a ser salva, ainda que sua passagem pela Terra sob a nova fé seja breve. Assim, Atahualpa foi poupado da fogueira e sua pena comutada para morte pelo garrote vil.
A morte pelo fogo deve ser a pior. A do garrote, porém, me parecera da mesma forma terrível. Afinal eu assistira à execução dos curacas condenados por Pizarro no litoral. Lembrei-me, assim da agonia dos condenados, suas expressões. O infeliz morre sufocado.
Não apenas eu, mas também a maioria dos soldados e religiosos empunhando cruzes, se concentrou em torno do grupo que cercava Atahualpa. Este não parava de protestar, gritando que o resgate fora pago, que cumprira com sua parte. Muitos índios tallans que o odiavam também vieram assistir ao suplício do Inca. Afinal, tinham seus motivos, ele massacrara seu povo de forma cruel, incendiara aldeias e suas casas.
E o Inca morreu
Ajustada a corda em seu pescoço, após um rufar de tambores, o carrasco deu a primeira volta no torniquete. Ao começar a segunda volta, frei Valverde e outros dominicanos entoaram suas preces. A boca de Atahualpa foi se abrindo, seus olhos foram ficando esbugalhados e sua língua cada vez mais roxa. Finalmente, sua cabeça pendeu para o canto.
Olhamos em silêncio para aquele homem que assassinara seu irmão e usurpara seu trono. Nem sei dizer se senti pena dele. Ou seja, Atahualpa não era apenas um monarca severo incapaz de perdoar as faltas cometidas por seus súditos. Era também vingativo e cruel. Naquele momento, o alcaide aproximou-se com uma tocha e, para constatar o óbito, encostou-a nos cabelos compridos do soberano quitenho, que se incendiaram. O rosto do cadáver, parcialmente queimado, ficou horrível. o Inca morreu.
Para servir de exemplo e inspirar respeito pela justiça de Carlos V, o corpo ficou abandonado no pátio durante toda a noite. Ou seja, só na manhã seguinte foi levado para a igreja e teve, assim, garantido seu direito a uma sepultura cristã. Na porta do templo estavam Pizarro e outros oficiais vestidos com roupas negras, de luto, já que o condenado fora um rei.
Missa interrompida
Frei Valverde anunciou que uma missa seria rezada pela alma do morto. Oficiais e soldados ajoelharam-se em silêncio, enquanto escutavam os cantos fúnebres. Olhei com o canto dos olhos para Pizarro. O Gobernador me pareceu triste. Ou seja creio que foi a contragosto que apoiou a execução daquele de quem chegara a ser amigo. O ofício, porém, foi interrompido por um acontecimento inesperado. irmãs e concubinas do morto invadiram nossa pequena igreja. Alucinadas, interromperam a missa. Pediam, assim, para ser enterradas vivas com ele. Frei Valverde perdeu a paciência. Gritou-lhes que Atahualpa morrera na fé cristã e seria, portanto, enterrado como tal. Em seguida expulsou-as do templo, mandando-as de volta a seus aposentos.
O suicídio das concubinas
Soubemos, posteriormente, que algumas dessas mulheres, após chamarem por Atahualpa aos prantos, se suicidaram. Outras passaram a cantar e igualmente a tocar tambores, entoando cânticos que contavam as façanhas de Atahualpa. Começaram a chorar e esgoelar a ponto de Pedro Pizarro, o jovem irmão do Gobernador, irritar-se com aquil. Perdendo a paciência, gritou-lhes que quem está morto não volta…
Serviar ao Inca mesmo após sua morte
À noite Ortiz e eu comentamos o ocorrido com Nitaya e Ñusta. Pelo que explicaram, as mulheres que se mataram queriam seguir Atahualpa para servi-lo após a morte. Ou seja, era o costume entre aqueles pagãos.
– Outra vida… – murmurou Ortiz. – Eles acreditam nisso, como nós.
– Outra vida, como? – pensei em voz alta. Nós vamos para o céu, para o purgatório ou para o inferno. Para onde esses índios vão? Para o inferno, por serem pagãos, como diz frei Valverde?
Nesse caso, as índias que se suicidaram irão servi-lo no inferno? Como isso é possível?
Ortiz deu uma boa risada.
– Nem sei o que pensar. O céu deve ser muito monótono.
– Bem, será ao lado de Deus.
– Todo mundo ao lado de Deus! Vai ter uma multidão em volta, talvez não dê para chegar tão perto quanto você imagina. E pode ser que entre você e Deus tenha muita gente de quem você não gosta.
Muito ouro
À parcela do resgate que chegara a Cajamarca somavam-se as riquezas que trouxéramos de Cusco e que Hernando arrebatara no templo de Pachacámac. Era muito ouro. Uma quantidade que nenhum de nós em toda a sua vida imaginaria ver. Assim, em uma sala permanentemente vigiada, amontoavam-se peças de todo tipo. Ou seja, barras do metal precioso já derretido, vasos, estátuas, ídolos, pratos, copos, enfeites, frisos arrancados de templos ,enfeites, como lhamas de ouro etc. A maioria era de ouro, mas havia muitos objetos de prata e pedras preciosas.
Eu, Pedro Garcia rico
Vez ou outra, íamos olhar para aquele tesouro, encher os olhos e, principalmente sonhar. Em suma, ter o direito de sonhar com o que faríamos com a parte que nos caberia. Cada soldado teria o bastante para uma vida tranquila até o final de seus dias. Apesar disso, todo homem, mesmo que seja rico, quer sempre mais. Estávamos tomados por uma espécie de doença da cobiça…
Cheguei a pensar em voltar para a Espanha, pois tinha mais do que o suficiente para comprar terras, conseguir um bom casamento e viver bem. Imaginava-me, rodeado de minha família, abrindo baús cheios de metais preciosos e esmeraldas e impressionando a todos. Os vizinhos diriam: Sabe o Pedro Garcia? Pois é, voltou riquíssimo do Peru!
Teresa, mal casada e arrependida, morreria de remorsos por ter me tratado daquele jeito. Eu sabia que era uma ambiciosa. Eu me imaginava, até mesmo, passando de carruagem em frente à sua casa…
A partilha
A partilha do tesouro dos templos do Peru causou muitas alegrias, mas também rancores. A corte comeu um quinto. Pizarro reservou uma parte para si. Seus irmãos foram igualmente generosamente contemplados. Hernando, por exemplo, recebeu quase o dobro da soma que coube a Soto. Este, que contribuíra com homens, armas e cavalos, não gostou. Pedro de Candía, um dos antigos companheiros de Pizarro e responsável pela artilharia que nos salvara em tantas situações, recebeu a terça parte do que coube a Hernando Pizarro.
Tudo isso gerou comentários e desagradou a muitos. Era visível que o Gobernador favorecia seus irmãos. Os cavaleiros foram mais bem pagos do que os homens a pé, como usual em qualquer exército.
Embora, na opinião de muitos, a divisão do ouro tenha sido injusta, não foram esquecidos os homens que ficaram em San Miguel, nem mesmo os covardes. Almagro recebeu uma boa soma, mas mostrou-se indignado com o pouco que coube a seus homens. Por outro lado, nós, os veteranos de Pizarro, que já participávamos da conquista há muito tempo e capturamos Atahualpa, não achávamos que deveríamos dividir com recém-chegados os tesouros conquistados a duras penas.
– Foram até bem pagos pelo nada que fizeram – disse Juan Pizarro.
A tensão entre os rivais
Depois que puseram as mãos no ouro, as disputas entre os dois velhos se acirraram. Isso criou inimizade entre os grupos e muita inveja por parte dos soldados de Almagro. Para piorar, Pizarro tinha ainda que lidar com seus irmãos, que detestavam seu sócio. Ou seja, no lugar de ajudar, contribuíam para agravar a situação. Eu e Ortiz já tínhamos discutido a respeito. Ou seja, ambos achávamos que essa situação poderia ainda acabar mal. Posteriormente, veríamos que tínhamos total razão. Afinal, era visível que a tensão entre os rivais aumentava.
Os nobres capturados
Os nobres capturados foram mantidos prisioneiros por ordem de Pizarro, que queria interrogá-los. Seu plano, após a tomada de Cusco, era iniciar uma colonização. Seria útil portanto conhecer melhor os incas e ter conosco alguns deles que fossem capazes de entender o espanhol. Esse ponto de vista era compartilhado pelos religiosos mais cultos, que queriam fazer do Peru uma colônia cristã.
Ortiz e eu fomos, portanto, incumbidos de ensinar espanhol a um índio. Ele não era um tallan, como José, mas um nobre da corte de Huáscar, de nome difícil de pronunciar: Achachíc. Quando o conheci, calculei, por seus cabelos grisalhos, que devia ter uns quarenta e cinco anos ou mais. Gostei de sua expressão inteligente e de seus modos gentis. Pizarro, embora analfabeto, percebera que Pablo não era o professor ideal de ninguém e que, inclusive, lia com dificuldade. Meu primo foi, portnbto, rocado por Ortiz.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: Achachíc
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