A catequisação e o aprendizado do espanhol
A catequização dos intérpretes dependia de conseguirmos ensiná-los a falar espanhol. Não tivemos dificuldades com os verbos mais comuns. Outros, porém, verbos como acreditar, lembrar, duvidar, me deram mais trabalho. Porém, com o passar dos meses, os nativos foram conhecendo cada vez mais palavras, o que nos permitia assim conversar. Logo descobri que tinham duas línguas. Uma era utilizada pelos membros de sua tribo, os tallans, e a outra se chamava quéchua. Esse era, aliás o idioma mais importante do Império Inca, ou seja, os dos quéchuas, ou incas “verdadeiros”. Logo compreendi que a palavra inca tinha vária significações. Assim, servia para designar o reino, seu povo e também, em um tom respeitoso, era igualmente o nome dado ao imperador, “O Inca”.
O soberano, era, aliás, quase uma divindade. Os incas, segundo me contaram, eram a tribo do vale de Cusco que dominaram e, porteriormente estenderam sua dominação aos povos vizinhos
Nossos intérpretes não eram, portanto, “incas”, mas tallans, ou sejam uma gente conquistada por eles e obrigada a pagar tributos e aceitar a sua autoridade. Melhor ainda: descobri que não gostavam dos incas.
Aprendendo quéchua
Eu mesmo também comecei a aprender muitas palavras do quéchua, que para mim era mais importante do que o tallan. Ou seja, quanto mais eles aprendiam espanhol, eu igualmente começava a aprender quéchua. Um dia, padre Fernando de Luque chegou à nossa choupana acompanhado de frei Vicente Valverde disposto a se empenhar na catequização dos intérpretes. Disse-nos, assim, que o frei participaria da próxima expedição e desejava converter nossos índios. Eu achava precoce, mas não quis, porém, contrariá-lo. Falei com os nativos, que concordaram, aliás, sem dificuldade em aceitar a nossa fé, embora nada soubessem sobre ela. O religioso disse que gostaria de iniciar seus ensinamentos com o Antigo Testamento.
As difíceis leis de Deus… A conversão dos intépretes
–Na catequização dos intérpretes índios começarei pelos Dez Mandamentos.
Disfarcei um sorriso e deixei-o com os tallans, observando-os discretamente, sentado à mesa enquanto tomava vinho ao lado de Pablo. José e Miguel, creio eu, tinham, aliás, apenas uma vaga ideia do que frei Valverde tentava lhes ensinar. Devem, portanto, ter ficado surpresos com o fato desses mandamentos existirem entre nós. Afinal, nada daquilo era tomado a sério pelos marinheiros e soldados espanhóis. Em suma, como já comentei antes, roubavam, matavam e cometiam igualmente toda espécie de pecado. Desse modo, quanto mais Frei Valverde lhes falava sobre a Bíblia, menos compreendiam.
Ficaram ainda mais confusos quando o frei explicou-lhes, entre outras coisas, que por meio da confissão, podiam ser também absolvidos diante de Deus dos pecados cometidos. Assim, quando conseguiram entender, os confundiu ainda mais.
– Então posso roubar, padre? Basta ajoelhar e contar ao senhor depois? Os cristãos depois de roubar se confessam? perguntou José. O sacerdote me fixou desanimado.
A catequização dos intérpretes: sem entender nada
Abriu os braços num gesto vago.
– Certamente que não! Certamente que não! Ou seja, com toda certeza não entenderam nada!
– Não sei se estão preparados para a conversão, senhor. Enfim, o senhor é quem sabe… Afinal, são gente simples…
Valverde respirou fundo, desanimado.
–Em nome de Jesus, é mais fácil fazer um macaco entender a Bíblia do que esses índios! Mas, Não importa, vamos converter os intérpretes mesmo assim. Afinal, a Igreja conta com isso. É provável que, convivendo conosco esses coitados entenderão melhor as leis de Deus.
Cocei a cabeça devagar. Não tinha entretanto tanta certeza disso, mas procurei colaborar com o clérigo. Assim, expliquei aos índios que seria útil igualmente para eles se converterem ao cristianismo.
– Certamente que vocês serão mais respeitados. Logo, no dia seguinte já estavam batizados, apesar de ignorarem entretanto quase tudo sobre sua nova religião.
O misterioso reino do Mar do Sul
Enquanto esperava a volta de nosso capitão continuei, assim, ensinando espanhol aos índios. Ao mesmo tempo colhia igualmente informações sobre o misterioso reino do Mar do Sul.
José, em especial, aprendia muito rápido. Sua facilidade em se expressar em espanhol ajudou-me, portanto, a entender como era esse reino que tentaríamos conquistar. Como ele era um tallan, dominado pelos incas, não tinha portanto, também nenhum pudor em revelar seus segredos. Fora, portanto, uma sorte capturá-lo.
Contei isso a Almagro. Espertalhão, ele esfregou as mãos, seu único olho até brilhou:
– Vamos trazer essa gente para nosso lado. Diga-lhes que vamos libertá-los.
Foi assim o que eu fiz. Expliquei, portanto, a José que queríamos libertar todos os povos dominados pelos incas: Ele, portanto, me ajudaria muito se contasse como era seu mundo. Não se fez, enfim, de rogado.
A mão pesada do Império Inca
Logo entendi, que apesar de odiarem os incas, os tallans tratavam também de servi-los fielmente. Ou seja, temiam a mão pesada do imperador se desobedecessem. Dessa forma todos obedeciam as leis do império. Se não o fizessem, os castigos seriam terríveis. Sua família e talvez toda sua aldeia fosse punida. Mas, agora nós, espanhóis, estávamos lhes oferecendo uma chance real de se livrarem dos dominadores…
Passei a chamar José, o mais interessado dos intérpretes, para a minha mesa, e desenvolvi mesmo uma certa cumplicidade com ele. Com o tempo, criou-se igualmente uma certa amizade entre nós.
Se antes eu via os nativos como seres muito diferentes de nós, agora, porém, começava a entendê-los e até a admirar suas qualidades. Dessa forma, vez ou outra voltava do mercado com frutas para ele, um homem de aproximadamente trinta anos, calado e observador. O mais jovem, Miguel, era preguiçoso e não parecia preocupado em aprender muita coisa; nunca lhe dei, aliás, muita atenção.
A índiazinha grávida
Pablo, que se interessava menos do que eu pelas histórias contadas pelos nativos, às vezes participava das conversas. Seus principais, prazeres, entretanto, eram beber e abusar da mucama, que acabou ficando grávida. Certa manhã, quando notei, na cozinha, que a barriga da indiazinha crescera, fiz uma careta. Só nos faltava essa! Fui falar com Pablo. Ele, que se pelava de medo do padre, estava, assim, preocupado.
– O clérigo Luque vai ficar furioso.
– Essas coisas são comuns nesta colônia, mas não sei como ele irá reagir, falei, pensativo, com a intenção de assustá-lo um pouco.
A curandeira
Alguém me falara de uma índia velha, uma curandeira capturada quando os primeiros espanhóis desembarcaram na colônia, que conhecia ervas abortivas. Fui conversar com ela. Perguntei-lhe, entre outras coisas, se isso acarretaria risco para a menina. Não gostaria que nada de mal sucedesse a ela e temia a reprovação do padre, que investira dinheiro ao comprar a nativa.
– A maioria sobrevive – respondeu em voz baixa.
Não tínhamos alternativa. Ao anoitecer, discretamente, levei a moça. Não quis, porém, ficar, nem assistir. Só reapareci no dia seguinte. A indiazinha jazia deitada num canto sobre uma esteira de palha, a barriga ainda inchada. Parecia muito enfraquecida.
– Ela vai se recuperar – disse a velha, que me pediu uma moeda.
– Se ela sobreviver, eu lhe pago.
Calma, primo! A moça é do padre!
Dois dias depois, fui buscá-la. Continuava fraca, mas estava melhor. Ajeitei-a em seu catre, levei-lhe frutas, água e pão. Em pé, Pablo me olhava atento:
– Quando vai estar pronta de novo?
Puxei meu primo para fora.
– Deixe-a em paz por uns dias, por amor de Deus! Servi dois copos de vinho. Abaixei a voz; preferia que os tallans não me escutassem.
– Ouça, primo, nós, homens, temos nossos desejos. Podemos foder quantas índias quisermos quando chegarmos ao reino inca. Mas, aqui na colônia podemos acabar tendo problemas. Se essa moça morrer você terá que prestar contas ao padre Luque. Uma indiazinha como essa custa dinheiro. Você tem o suficiente para indenizar o reverendo?
Aconselhando o primo bruto
Pablo bebeu um gole de seu vinho, escutando-me.
– E o que você quer que a gente faça?
Abaixei os olhos para a mesa.
– Pablo, eu tenho certeza de que você sabe foder essa índia sem emprenhá-la.
Ele pensou por um momento.
– Fazer como a gente fazia com certas putas em Sevilha? Aquelas mais vagabundas?
Concordei com um movimento de cabeça.
– É isso. Mas não machuque a menina. E só fique com ela quando eu levar José e Miguel até o porto para ensiná-los sobre as embarcações. Não quero que assistam. E deixe-a repousar uns dias antes de qualquer coisa.
A moça devia detestá-lo. Além disso, menos do que eu e outros epanhois, Pablo raramente tomava banho. Assim fedia como um bode velho.
Nada de banhos
Ao contrário dos índios, que sempre se lavavam, nós quase não tomávamos banho.
Passei a mão pela testa, sempre gordurosa com o calor que fazia. Enfim, eu sabia que a Igreja desestimulava o excesso de banhos, porque o contato com o próprio corpo podia ser um primeiro convite ao pecado, um ensinamento que vinha de muito antigamente
Só não exagerem
Dizia-se que tomar banho com frequência era coisa de mouros. Aliás, os infiéis, que ocuparam a Espanha por tanto tempo, sempre o faziam. Os cristãos, entretanto, só vez ou outra, ou em ocasiões especiais. Em geral, nos limitávamos, porém, ao principal: ou seja, lavar os pés, o rosto e as mãos. Esse costume dos índios de se lavar quase impedira, na semana anterior, seu batismo. Tinham medo de que, tornando-se cristãos, não pudessem continuar a se lavar e só consentiram em ser convertidos quando o padre Luque os autorizara formalmente a tomar banho. Mesmo assim, ele advertiu:
– Só não exagerem. Mas, por que gostam tanto de banhos… Corpo nu é pecado…
José deu sua explicação:
– Desde crianças as mães da gente nos levam para brincar no rio… A gente brinca na água…
Luque suspirou. Levou a mão à cabeça, mas não disse nada. Não consegue entender aquilo.
Banho é pecado?
Eu já tinha notado que os índios não gostavam muito de nosso cheiro, já que ficávamos dias a fio com a mesma roupa, transpirando naquele calor do Panamá, e, é claro, ter odor é normal. Banhar-se era, portranto, algo que fazíamos apenas quando tínhamos audiência com uma autoridade e aos domingos. Ou, igualmente, quando íamos à missa. Por isso, embora os índios e eu conversássemos muito, notava que eles mantinham certa distância de nós e do padre Luque, cuja batina exalava um forte cheiro de suor misturado ao de um perfume fabricado na França.
As chuvas de Nombre de Dios
Os dias em Nombre de Dios tornavam-se tediosos. Às vezes chovia uma semana inteira e ficávamos todos confinados na casinha, sem ter muito o que fazer. Deitado em uma rede eu pensava em meus pais e na vida que levava em Sevilha. Lá, eu etaria talvez entregando vinho em algum lugar, quem sabe, no convento dos padres. Talvez fosse mais divertido do que ficar vendo a chuva cair.
Pensei também em Tereza. O que fazia? Estaria nos braços de um pretendente? Eu a encontraria solteira quando voltasse com meu ouro.
Siga o relato:
Como um analfabeto no comando de menos de duzentos homens, com pouca ou nenhuma experiência militar, conseguiu dominar um império de doze milhões de pessoas ?
Siga a continuação desta postagem: O regresso de Pizarro
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