

O acampamento de Atahualpa
Logo depois subimos até a plataforma de madeira no alto das muralhas. Dali, o enorme acampamento de Atahualpa era, assim, inteiramente visível.
– Virgem Santa! – exclamou Pablo, boquiaberto. Engoli em seco enquanto corria os olhos pela infinidade de tendas de peles repletas de guerreiros. Lembrei-me do que me dissera um cura em Sevilha quando eu ainda era menino: não se deve pedir demais a Deus. Assim, permanecemos um bom momento olhando assustados para o campo de Atahualpa. Vamos morrer, pensei. Implorei a Jesus que minha morte não fosse demasiadamente sofrida. Aliás, José, ao meu lado, talvez pensasse a mesma coisa.
As armas do exército de Atahualpa
– Espero que o deus de vocês seja de fato muito poderoso. – Depois, lembrou-se. Tinha se convertido no Panamá. Corrigiu-se. – O nosso Deus, quero dizer.
– Estão bem armados? indaguei.
– Sim… Mas não se comparavam as espanholas… E são de bronze.

Ajeitei meu capacete.
– Vamos voltar para a praça. Pizarro e a tropa nos aguardam; podem ficar preocupados com nossa demora. Coloquei as mãos nos ombros de Pablo e de José e acrescentei: – É melhor, aliás, não comentar com os soldados o que vimos daqui de cima. Ou seja, alguns podem tentar desertar e o Gobernador ficará irritado conosco.
Mensageiros de Pizarro
Pizarro tinha agora a certeza de que tanto a cidade como a fortaleza estavam, em princípio, desertas. Olhou para o sol e, calculando que teria mais de uma hora de luz, nos enviou com dezoito outros cavaleiros e dois tradutores ao acampamento de Atahualpa. Hernando nos seguiu uma hora mais tarde, com homens a cavalo. As ordens eram de não provocar os índios. Em resumo, só fazer uso das armas em caso extremo.
– Cheguem, portanto, na condição de embaixadores – insistiu, dedo em riste. – Digam também a Atahualpa que eu o convido a compartilhar minha refeição esta noite. Nada, portanto, de arrumarem confusão sem motivo.

Os homens se entreolharam e sorriram. Toledo, bem do meu lado, comentou em voz baixa:
– O Gobernador e Atahualpa jantando juntos… Vai ser muito engraçado!
Os soldados passaram, então, a gracejar, como para esconder o pavor que os tomara. Na verdade, porém, estavam todos tensos, sem saber o que os aguardava.
Entrando na toca do lobo, o acampamento de Atahualpa
Saímos por um caminho de pedra muito bem construído, rodeado de canais que conduziam a água de um riacho até a cidade. Do outro lado do rio começava o acampamento das tropas, com as tendas rigorosamente alinhadas, formando as “ruas” e “praças” que avistáramos do alto da fortaleza. Impressionado, comparei-o com a bagunça dos nossos campos militares. Também me chamaram a atenção as vestimentas e os chapéus desses índios. Cada grupo usava um tipo de roupa: ou seja, aquele exército era formado por diferentes tribos aliadas dos quitenhos.

Rodeados de guerreiros incas
Era evidente, entretanto, que Atahualpa dera ordens de nos deixar entrar. Afinal, os guerreiros em ambos os lados do caminho apenas nos olharam e afastaram-se, abrindo passagem para nós. Notei igualmente, que encaravam com apreensão os cavalos que, para eles, eram bichos enormes, muito mais pesados e volumosos do que suas lhamas. Ninguém, por outro lado, entre aqueles guerreiros havia visto um animal desses antes. Seriam carnívoros?
Eu e os demais companheiros, de nosso lado, disfarçamos nossa preocupação. Afinal, tínhamos motivos, já que éramos apenas duas dezenas e tínhamos à nossa volta milhares de guerreiros armados com porretes, arcos, fundas e lanças. Se nos atacassem… Assim, Hermando a toda hora tinha que motivar o grupo:
– Vamos lá, bando de cagões...

As termas do inca
O caminho terminava em um pátio em frente à mansão do Inca, com tanques de águas termais. A casa, que eu visitaria mais tarde, era formada por quatro pavilhões de pedra em volta de uma grande piscina que recebia tubulações com água quente e fria. Era onde o Inca tomava seus banhos, sozinho ou acompanhado de suas concubinas. Ou seja, quem ali entrasse sem permissão pagaria o desaforo com sua vida.
(n.a.: As antigas termas de Atahualpa viraram atrações turísticas no Peru atual. Suas piscinas a a importância histórica do sítio arqueológico atraem muitos visitantes).

Diga ao cachorro que saia!
– Não desmontem – nos avisou Soto. Ordenou a José:
– Avise que queremos falar com Atahualpa.
Nenhum guerreiro se moveu, mas, pouco mais tarde, porém, um orejón se apresentou, dizendo que levaria nossa mensagem ao soberano. Ficamos, asim, um bom tempo aguardando, impacientes, com o coração batendo disparado. Logo ouvimos cavalos se aproximando. Voltei-me. Era Hernando que chegava com mais homens. Vendo Soto parado, sem saber o que fazer, ele perguntou o que estava sucedendo:
– Cadê o homem?
– Não sei… Foram buscá-lo, mas ele não aparece.
– Como assim, não aparece? – Voltou-se para José e disse: – Chame novamente o miserável! O intérprete obedeceu, mas ninguém deixou a casa. Hernando Pizarro irritou-se:
– Carajo… Diga ao cachorro que saia!

O Orejón que já conhecíamos
Mesmo acostumados com a ousadia e os maus modos de Hernando, ficamos, porém, atônitos. Sem mover a cabeça, olhei com o canto dos olhos para a multidão de guerreiros perto de nós.
Ao ouvir o vozerio de Hernando, um orejón saiu da casa. Era o mesmo que ele afastara a pontapés. De novo, aquele homem! O orejón conhecia a palavra perro (cachorro em espanhol). Afinal quando espionara nosso acampamento nos perguntou que nome dávamos aos cães. Seus olhos faiscaram de raiva pelo insulto e também por se deparar com Hernando. Logo voltou para dentro da casa, indo se encontrar com Atahualpa.

O convite
O Inca escutava tudo sentado em uma banqueta que lhe servia de trono. Uma cortina semitransparente lhe permitia nos ver sem ser visto. Sem nenhuma cerimônia, Soto aproximou seu cavalo da porta e mandou que o intérprete traduzisse suas palavras.
– Diga-lhe que o Gobernador Pizarro o convida a encontrá-lo e comer com ele.
Atahualpa continuou atrás de sua cortina e não respondeu. Aliás, normalmente, o Inca só se dirigia a alguém de frente para recompensar ou punir.
Hernando, impaciente, disse palavrões em voz alta.
– O filho da puta vai sair ou não?
Atahualpa
Nesse momento, dois índios afastaram a cortina e pudemos, dessa forma, ver Atahualpa em seu minúsculo trono, com duas índias junto de si, sentadas em esteiras.
Era esse, então, o homem que tanto temíamos? O Inca, de cerca de 35 anos, não era baixo nem alto e tinha um porte altivo. Notei, porém, que, ao contrário de outros índios que vira, usava os cabelos compridos. Suas roupas eram especialmente bem tecidas e de várias cores, muito mais sofisticadas do que aquelas que
encontrávamos nos depósitos.

Não portava, entretanto, coroa como os reis europeus, mas apenas uma tira vermelha na cabeça, símbolo de sua dignidade real. Atahualpa ignorou Hernando mais uma vez e dirigiu-se a Soto. Disse que encontraria Pizarro no dia seguinte. Em seguida mandou que as índias trouxessem dois copos de ouro com chicha. Ofereceu assim um deles a Soto. Disse, porém, que, quando se encontrassem o Gobernador teria que aceitar que os espanhois lhe devolvessem tudo o que os viracochas tinham saqueado desde a chegada à Baía de San Mateo. Começamos mal, pensei.

Hernando se irrita
Para agravar a situação, Hernando, que não gostou nem um pouco de ser ignorado. Logo disse ao intérprete que traduzisse suas palavras:
– Diga a ele – disse, indicando Atahualpa com um gesto de cabeça – que Soto e eu somos iguais e estamos ambos aqui em nome de nosso rei e também de nosso Deus. Soto, percebendo que a situação poderia se complicar, mandou que o intérprete avisasse:

– Ele é irmão de Pizarro.
Asim, pela primeira vez, Atahualpa dirigiu-se a Hernando:
– Você maltratou meus curacas e meus orejones.
– Só maltratei quem atacou e matou cristãos. Aliás, não queremos guerra contra seus curacas, mas, quando somos atacados, nós, os espanhóis, lutamos até o fim e destruímos quem nos ameaça. Pizarro quer ser seu amigo e apoiá-lo nessa guerra. Aliás, dez dos nossos homens a cavalo acabam com qualquer curaca inimigo.
Atahualpa não respondeu de imediato.

Tahualpa aceita o convite
Creio que, embora se contivesse, estava entretanto irritado com o fanfarrão, a quem estendeu o outro copo de chicha. Disse:
– Avise seu irmão que amanhã irei encontrá-lo. Bebam.
Nenhum dos capitães quis, entretanto, beber, temendo ser envenenados. Atahualpa sorriu ao entender a desconfiança dos espanhóis. Pediu assim os copos de volta, tomou um gole de cada um e os devolveu a Soto e Hernando. Somente então os dois, após uma troca de olhares constrangidos, aceitaram finalmente beber.
A exibição de Soto
Em seguida, não sei por que, Soto se dispôs a mostrar do que um cavalo era capaz e seu domínio sobre o animal. Acho, aliás, que quis impressionar os índios e Atahualpa. Partiu disparado para a outra ponta do pátio, depois puxou as rédeas com força, freando bruscamente. Hábil cavaleiro, demonstrou dessa forma que conseguia, assim, fazer seu cavalo mudar de direção, empinar, desviar. Exagerou, porém, ao avançar a toda a velocidade sobre Atahualpa, que continuava sentado, e parou a poucos palmos do Inca, enquanto o cavalo empinava e relinchava. Respingos da narina do animal chegaram inclusive a atingir o rei. Eu e os demais espanhóis ficamosportanto petrificados. Ele está louco, pensei.

Atahualpa não se impressiona
Mas, se sua intenção fora intimidar o Inca, não teve, porém, sucesso. Ou seja, o corajoso Atahualpa manteve-se impassível em seu banquinho. Surpreendemo-nos com a segurança demonstrada pelo monarca. Perguntei-me, inclusive, se o capitão Soto não se sentira sem graça ao ver que sua exibição não tivera o efeito desejado.
Por outro lado, o espetáculo teve impacto entre os presentes. Assim, muitos súditos do Inca, apavorados, fugiram. Soubemos mais tarde que Atahualpa, indignado, disse aos seus índios que o cavalo era apenas um animal que, ao que constava, não comia carne; era como uma lhama, apenas maior e menos dócil. Os que fugiram eram, portanto, covardes que o envergonharam na frente dos embaixadores dos viracochas. Ou seja, como castigo, mandou matá-los. Com toda cereteza queria que servissem, assim, de exemplo aos demais.
A corte inca
De onde eu estava, pude assim observar curiosos costumes dos soberanos incas, que José pôde, posteriormente, me explicar ao voltarmos para Cajamarca. Notei também que quando Atahualpa ia cuspir, uma das índias ao seu lado estendia a mão, aparando a saliva para que não atingisse o solo. Da mesma forma, em outro momento, quando um dos fios de seus longos cabelos caiu, a outra índia estendeu a mão rapidamente, o pegou e o engoliu. A finalidade, segundo José, era impedir portanto que a saliva ou um fio de cabelo do soberano pudessem assim ser usados em sortilégios.

Os presentes de Pizarro
Pude notar também que as roupas do Inca eram de uma lã delicadíssima, quase tão fina como o algodão. Não se tratava, porém, de lã de lhama, mas de alpaca, um animal semelhante à lhama, mas menor, conforme Nitaya me ensinara, mostrando-me o animal. Em suma, as lãs de melhor qualidade eram reservadas ao imperador e igualmente aos nobres. Aliás esses critérios de qualidade valiam igualmente para qualquer produto. Em suma, tudo o que havia de mlhor era reservado à corte.

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